A Nossa Natureza

Isto é o título

Recebi por email um pedido para preencher um questionário sobre actividades culturais na Região, fiquei por esse meio a saber que Ponta Delgada é candidata a Capital da Cultura em 2027, sob o lema “A Nossa Natureza é Humana”.

Dispunha-me a colaborar preenchendo o questionário mas não colaborei porque exigiam mais identificação do que deve exigir um questionário deste género, ferramenta em princípio destinada a recolher dados para os tratar mas sem os relacionar com os indivíduos, ou seja, deve por exemplo permitir saber que na Ilha das Flores há uma companhia de teatro que leva ao palco peças de teatro de Revista que tem X público a cada apresentação mas não tem nada que saber que o Jorge Ventura detesta teatro de Revista.

Quando me pediram para dizer “o nome e redes sociais, para identificar”, assim mesmo directamente, desisti. Os resultados desse questionário não vão reflectir as minhas opiniões e hábitos culturais, não se perde muito.

Fiquei a pensar numa candidatura de Ponta Delgada a um evento como Capital Europeia da Cultura e, pessimista e filisteu como sou, achei má ideia. Uma cidadezinha, no extremo ultra periférico da Europa dificilmente tem massa crítica para grandes eventos, culturais ou de outro género, pouco público local e dificuldades de acesso a números maiores pelo que uma coisa destas, a realizar-se, ia ser muito feita de convites a artistas de fora, consumindo um orçamento de 25 milhões de euros em encomendas a conhecidos e amigos, para serem desfrutadas por uma percentagem pequena da população sofisticada.

Uns dias mais tarde convidaram-me para uma espécie de sessão aberta sobre o tema, com a presença de pessoas ligadas à organização. Curioso e interessado como sou, lá fui, disposto a conhecer mais e mudar de opinião se fosse caso disso, o modo como eu acredito que devemos encarar as coisas.

Fui até á Fajã Grande, a pensar encontrar um auditório grande e interessado mas depois lembrei-me de como é o sítio onde vivo e não estranhei terem aparecido meia dúzia de pessoas, até achei bastante bom. Pelo caminho ia ensaiando os meus preconceitos e argumentos chatos, tipo “dizer A Nossa Natureza é Humana é um truísmo que não significa nada, porque sendo humanos é óbvio que a nossa natureza é Humana”, mas ainda nem tinha chegado à Fajãzinha e já tinha visto a frase de outro ângulo: não significa necessariamente “a nossa natureza” no sentido de essência da espécie mas pode significar “a nossa Natureza” no sentido do meio ambiente que nos rodeia, e dizer que essa natureza é humana já ressoa melhor comigo, é um das minhas ideias favoritas, a noção de que no Arquipélago a Natureza é em grande parte moldada pelo Homem, é humanizada. Trabalhar um pouco “contra” o cliché gasto dos Açores como repositório do mundo natural e fazer valer mais a parte Humana.

Assisti à apresentação das linhas do projecto, expostas por uma pessoa não só obviamente competente e conhecedora na sua área mas com boa capacidade de comunicar, coisas que nem sempre andam juntas. Percebi que não estamos a falar só de Ponta Delgada mas de um projecto para nove ilhas, de Santa Maria ao Corvo, e que se pretende explorar e valorizar traços unificadores da Cultura Açoriana, suas influências externas, o que recebeu e o que deu, a relação com o meio e as capacidades que permitiram ao Homem estar aqui há mais de 500 anos, em condições que podem parecer paradisíacas aos visitantes mas que são um desafio quase constante.

Quando chegou a minha vez de falar disse que não sei nada sobre artes mas conheço uma manifestação cultural que cumpria todos os critérios procurados: une o Arquipélago e pode ver-se em todas as ilhas; faz a ponte entre o Passado e o Presente; nasceu com a influência do estrangeiro e das necessidades da terra; exportou para o Mundo gente e pedaços do Arquipélago; inovou e adaptou tecnologia e tornou-se tão boa como as melhores da área; conseguiu passar de uma relação de caçador e presa para uma relação entre um animal livre e seus admiradores e maiores defensores; fez o contacto mais puro entre a Terra e o Mar que é a essência das Ilhas, e hoje é uma festa, uma celebração e motivo de orgulho da Região.

Falo do Património Baleeiro Açoriano, da riqueza histórica, cultural e estética que lhe está associada e que, espero bem, terá lugar de destaque num programa que queira fazer da Região uma Capital Europeia da Cultura. Pode ser fonte de inspiração e trabalho para todo o género de artistas, quem sabe até uma Revista criada pela Jangada com inspiração na baleação, porque se gostássemos todos do mesmo este mundo era uma chatice.

Desejo sorte ao grupo que está a trabalhar na candidatura, espero que consigam despertar entusiamos e projectos de valor, é uma corrida de fundo e mesmo que não se ganhe, vai enriquecer-se a Região com ideias, contactos, experiências e saber. Os botes baleeiros das Flores cá estarão, prontos para participar.

Vídeo: Site oficial da candidatura “Azores 2027”.

Perfil do Autor

Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.

Jorge Ventura

Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.

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