Centenário de Pedro da Silveira (1922-2022)
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Começo por agradecer a Pedro Costa, presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, ter acolhido a nossa iniciativa de colocação duma placa de homenagem a Pedro da Silveira no edifício 14 da Rua Freitas Gazul, em cujo segundo andar esquerdo viveu por mais de três décadas o poeta, tradutor e investigador literário florentino (também se diz florense). Trata-se, na verdade, de um acto duplamente simbólico, na medida em que, além de fixar uma memória da sua presença neste bairro de Lisboa, é também a primeira realização dita nacional (nas ilhas também se diz continental) dum ciclo de realizações a caminho do centenário do seu nascimento, a 5 de Setembro do ano 2022. Talvez até um acto triplamente simbólico, por lhe ter sido possível associar a Casa dos Açores em Lisboa, o Instituto Açoriano de Cultura, editor da sua obra poética, e a Seara Nova, revista já centenária à qual ele prestou colaboração durante anos. Nascido um ano depois dela, é muito improvável que Pedro da Silveira, leitor pantagruélico, como se sabe ou imagina, já a lesse no berço mas não duvido que o tivesse feito desde a juventude, como grande revista portuguesa com notórias raízes açóricas, como as de Luís da Câmara Reys (1885-1961), que um dia se descreveu a si mesmo como «alfacinha num viveiro de ilhéus», além de outros fundadores que aos Açores prestaram serviços relevantes. Refiro-me ao meu muito querido Raul Brandão, com Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens de 1927, e a Raul Proença, com um guia de Portugal que inclui os Açores, um livro pouco reconhecido entre nós mas publicado no exílio parisiense pela Hachette, em 1931.
Se agradeço ao presidente da junta de freguesia, não agradeço menos à sua equipa — Nuno Figueira, Filipa Guerreiro e Henrique Pinto Marques — a forma competente e generosa com que se envolveram nesta homenagem ao antigo e notável freguês de Campo de Ourique, e à empresa Anfíbia a belíssima fabricação da placa que há pouco inaugurámos, ufanos e felizes.
Um centenário é sempre um pico de memória, de revisitação e de resgate do esquecimento. Por maioria de razões, o centenário dum escritor e investigador literário do calibre de Pedro da Silveira tem de o ser ainda mais, e do modo tão especial quanto possível, sobretudo quanto há tanto por fazer e ainda não foi feito, nestes quase vinte anos que decorreram sobre a sua morte, em 2003. Especialmente por isso, os trabalhos destas comemorações foram iniciados há um ano, também pelo seu aniversário natalício, quando, por convite do Município de Lajes das Flores, ali fui palrar sobre «Pedro da Silveira, crítico e historiador literário», numa perspectiva que também colocou em evidência o seu instinto etnográfico, de realce de tradições literárias populares, e também linguístico, áreas de identidade que foram durante décadas um dos seus mais fortes interesses intelectuais. Uma das suas mais marcantes colaborações na Seara Nova, de tipo serial, depois publicada em separata-folheto, foi precisamente dedicada ao comentário da passagem pelo grupo ocidental dos Açores do grande José Leite de Vasconcelos.
Outro trabalho dele, de 1953, foi o resgate dum originalísismo auto de Natal da sua ilha das Flores, mas Pedro não se fechou, de maneira nenhuma, no micro-universo do extremo ocidental da Europa. No seu segundo livro, Sinais de Oeste, precisamente, do ano 1962, inclui um extraordinário poema dedicado ao poeta francófono de viagens Blaise Cendrars, que facilmente podemos comparar àqueloutro, tão mais conhecido, que Fernando Pessoa havia feito em 1915 em atenção ao norte-americano Walt Whitman. O poema acaba com o verso «— Je te salue! Bénis-moi, mon Maître!»
A paciente pesquisa que vem sendo feita, repassando anos e anos e anos de imprensa regional e continental, tem trazido à evidência muitos artigos de Pedro da Silveira não assinalados em bibliografias, que atestam o seu precoce cosmopolitismo literário e o afirmam como precursor da lusofonia, através da divulgação das literaturas caboverdiana, angolana e brasileira em contexto açoriano, em particular no jornal A Ilha, depois de ter identificado que Machado de Assis, Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto e Carlos Drummond de Andrade tinham antepassados açorianos… Mas esse cosmopolitismo literário também fica patente na sua actividade como tradutor de livros de grandes autores europeus e sul-americanos, como Alberto Moravia e Miguel Ángel Asturias, entre outros, e tem expressão máxima na sua antologia de poesia estrangeira, publicada em 1986 sob o título mais que perfeito de Mesa de Amigos. Facto pouco conhecido: traduziu Dom Quixote de Miguel de Cervantes.
Nas décadas de 1940-50, também escreveu para suplementos literários dos grandes jornais do Porto, para revistas de tendência em voga como Átomo, Ler, Jornal de Letras e Artes, Vértice, Mundo Literário, o que lhe deu reconhecimento inter pares e uma convivialidade propiciatória, sempre relevante para quem vem duma ultraperiferia. Tertúlias de café no Saldanha, com José Gomes Ferreira e Carlos de Oliveira, e no Campo Grande, onde aparecia Mário Soares, fizeram parte dessa vida cultural lisboeta em que Pedro da Silveira se integrou bem, sendo, aliás, especial confidente e amigo de Herberto Helder na sua deriva europeia, como atesta correspondência conservada na Biblioteca Nacional. Fotografia no seu espólio documenta ter estado num jantar em louvor da escritora Isabel da Nóbrega, muito recentemente falecida, por ocasião do prémio literário concedido em 1966 ao seu romance Viver com os Outros.
Do que fez e viu acontecer nos Açores literários desses mesmos anos deu Pedro da Silveira testemunho de grande valor histórico para um livro organizado por Onésimo Teotónio Almeida, Da Literatura Açoriana: subsídios para um balanço (1983). Mas a própria Seara Nova, em que colaborou de 1957 a 1976, ou a Vértice em 1962, demonstram que ele nunca descurou temas açorianos, procurando trazê-los, pelo contrário, para a ribalta cultural portuguesa. Se uma antologia do conto açoriano ficou pelo caminho porque o editor lhe propôs que pedisse ao Estado Novo, que ele abominava, um apoio financeiro para a impressão, se não conseguiu convencer nenhum editor a traduzir Home Is a Island de Alfred Lewis, em 1973 logrou publicar a obra poética do seu patrício Roberto de Mesquita pela Ática, em 1977 a sua Antologia da Poesia Açoriana, do século XVII a 1975 pela Sá da Costa e, como se não bastasse, estimulou a primeira reedição em meio século do livro de Raul Brandão sobre os Açores, levada a prelos da Perspectivas & Realidades, em 1979, nos inícios da sua breve mas meritória actividade editorial.
Não tenho dúvidas de que o período de trabalho na Biblioteca Nacional, de 1974 a 1993, foi excepcional para ele. Para um investigador literário do seu calibre e vastidão de interesses, viver o quotidiano na BNP, com tantas coisas à mão a pedirem a sua atenção, e o potencial diariamente renovado de todas as outras que de improviso ou por acaso podem aparecer (sei disso…), é ter a sorte de viver como peixe na melhor água. Significou também o benefício de trocas com o escol de historiadores de literatura que ali existia, há muito deixou de existir e não foi ainda renovado em condições, nem parece que venha a ser, com o prejuízo explosivo que isso comporta. Diria então, para finalizar — e não vos maço mais —, que o acto de hoje é, afinal, por uma quarta vez simbólico: lembra-nos um homem movido por um excepcional dever de serviço público, e a falta que eles nos fazem.
Muito obrigado!!
Vasco Rosa
Texto lido na sessão do Centro Cultural Europa, a 4 de Setembro de 2021.
Vasco Medeiros Rosa, lisboeta, 63 anos, editor, jornalista e investigador. Publicou Raul Brandão e os Açores em 2017. Prepara uma edição de dispersos de Pedro da Silveira para assinalar o seu centenário e um livro sobre o escultor Canto da Maya. Tem escrito para revistas e jornais açorianos e colabora regularmente com o Observador desde 2014.
- Outubro 25, 2021