Pierluigi azul e verde

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Com a publicação dos livros e com os cinco lançamentos, procuramos assinalar o primeiro aniversário da partida precoce de Pierluigi Bragaglia, fazendo aquilo que os livros permitem fazer desde há tantos séculos: manter viva a inteligência, a graça e a memória de quem os escreveu. Queremos que os trabalhos açorianos de Pierluigi Bragaglia se tornem mais conhecidos no arquipélago e cheguem a todos aqueles que amam os Açores e os estimam como Pierluigi fez, desde a sua primeira visita em 1985 — há 36 anos atrás, um aventureiro curioso do mundo, de mochila às costas.

Agradeço como editor, me juntar a quantos aqueles — e são certamente muitos — que choram a ausência de Pierluigi Bragaglia, um homem notável acima de qualquer dúvida. Não o conheci pessoalmente, mas, como imaginam, ao longo deste quase um ano passei muito tempo a ouvi-lo e a tentar entendê-lo, nas linhas e nas entrelinhas do muito que escreveu. Um editor não é um escritor, muito menos um juiz de escritores, mas tem por dever de ofício e hábito intelectual entendê-los e valorizá-los no máximo das suas capacidades, e foi isso que procurei fazer.

Agradeço em primeiríssimo lugar a Luísa Madruga, Claudio Bragaglia e Artur Bragaglia a possibilidade de organizar e editar estes livros com a perspectiva de que este primeiro aniversário fosse um convite à releitura panorâmica dos trabalhos de Pierluigi como historiador dos Açores e comentador lúcido e livre da realidade florentina e regional. Agradeço em seguida à minha grande amiga Ana Monteiro o exemplo de entusiasmo que coloca em tudo que faz para o bem destas ilhas e o apoio que dela recebi ao longo deste ano, em particular na concretização da ideia de fazer abraçar os livros de Pierluigi com uma caixa de bela madeira nativa da Ilha das Flores. Essa ideia surgiu-me depois de em Setembro do ano passado ter visto um bosque de criptomérias decepadas pelo furação Lorenzo, e ter pensado que, para a família de Pierluigi, os seus principais amigos e em geral a gente daquela Ilha a sua morte foi uma devastação de proporções comparáveis à catástrofe que a antecedeu. Quis, enfim, que o corpo da Ilha e o espírito do autor se juntassem e fundissem — uma vez mais, e para sempre — num objecto único, o livro, esse magnífico símbolo de comunidade e civilização. 

A caixa que envolve e protege estes livros só pôde tornar-se realidade graças a colaborações muito estimáveis, que quero agradecer enfaticamente. À Direcção Regional das Florestas e à Secretaria Regional das Obras Públicas, que sucessivamente cederam, serraram e transportaram a madeira. Ao Grupo Bensaúde as facilidades de transporte (ida e volta) para as boas mãos do marceneiro faialense Mestre Silva, que construiu 500 caixas a partir dum projecto do arquitecto Albino Alves Pinho, que como amigo de Pierluigi preferiu segui-lo na recusa de convenções consagradas, desenhando, vamos dizer, uma caixa fora da caixa.

Pierluigi veio aos Açores pela primeira vez em 1985. Três anos depois publicou em Itália um guia histórico-turístico de Portugal, cujo capítulo sobre os Açores, com mapas de todas as ilhas desenhados por ele, pode agora ser lido no segundo volume. É um trabalho incisivo e esforçado, para alguém que, afinal de contas, tinha apenas 23 anos… São cerca de 70 páginas que hoje nos dão uma clara medida do que, desde então, mudou em termos de oferta turística e não só, claro. Logo desde as primeiras impressões a Ilha das Flores encantou-o mais do que todas as outras, até mesmo de São Jorge, isso fica claro nas páginas que então lhe dedicou, e mais claro ainda com o projecto do alojamento Argonauta, na principal rua da Fajã Grande, inicialmente partilhado com dois amigos, um dos quais, Giorgio.

É extraordinário constatar que foi ali no extremo ocidental da Europa que Pierluigi escreveu a sua tese de licenciatura dedicada à aventura marítima do Renascimento, orientada pelo saudoso professor Joel Serrão, em que navegadores das repúblicas marinheiras da península itálica deram colaboração decisiva a portugueses e espanhóis na audaciosa descoberta de «novos mundos» no mundo, primeiro os arquipélagos norte-atlânticos e depois, graças a toda a teimosa obsessão e clarividente intuição de Cristoforo Colombo, o sonho de chegar à Índia pelo ocidente. Em vésperas da celebração dos 500 anos de descobrimento da América do Norte pelo genovês — e certamente muito motivado pelo magnetismo da sua figura, tantas vezes incompreendida e maltratada —, Pierluigi percorre ao mesmo tempo toda uma tradição, absolutamente fascinante, de resto, que vem da Antiguidade clássica de busca pessoal, protagonizada por argonautas destemidos e simbolizada pelo tal Vélio de Ouro, ou Tosão de Ouro, tradição em que ele claramente se inscreve e justifica o título que demos ao seu livro. Essa ideia de dar à própria vida um propósito maior do que o simples passar do tempo que a cada um é dado viver, é o epicentro exacto e preciso da personalidade do nosso autor, que encontrou na Ilha das Flores e nos Açores em geral o seu lugar para, como escreveu mais do que uma vez, «pensar o mundo».

Se me permitem, diria mesmo que há algo de filósofo em Pierluigi Bragaglia, em especial no que diz respeito à relação homem/natureza, ao equilíbrio entre trabalho e ócio, à observação da paisagem e dos modos de viver contrastantes em diferentes povos e lugares deste tão vasto mundo, e a indispensável curiosidade e respeito por todos eles como expressões da experiência humana, mas também — e procurei sublinhar isso na organização temática da sua obra — um pensamento acerca do futuro da humanidade, confrontada com os excessos da vida urbana, do desgaste causado pelo consumismo e pelo industrialismo. Julgo que ele entendeu que os Açores e em particular a Ilha das Flores, com os seus «cinco séculos de solidão», estão em condições excepcionais para proporcionarem um novo começo, desde que resista à sedução duma ideia de progresso já demasiado ultrapassada. Pessoalmente, teria gostado muito de trocar umas palavras com ele acerca da sua ideia dum regresso à Casa como epicentro da vida humana, aquilo a que ele chama o Lar Electrónico, em que cada um de nós pode trabalhar, comunicar e comprar, sem perder o seu tempo em deslocações descabidas, ou ouvi-lo falar dum modo de vida baseado na capacitação individual de tipo faça você mesmo, algo que, de resto, ele soube reconhecer na habilidade de quem, vivendo na ultraperiferia dos serviços e dos transportes, se tem de desenrascar para seguir adiante.

Mergulhando na história mais antiga dos Açores, e em particular do grupo ocidental, Pierluigi pôde compreender da maneira mais exigente possível quanto a ausência de infra-estruturas portuárias e rodoviárias condicionou fortemente o povoamento e a economia destas ilhas remotas. Reparem bem como foi capaz de, logo depois de concluir a sua licenciatura, se interessar a fundo pela história do cooperativismo dos lacticínios, a partir dum produto de grande excelência, a manteiga produzida nas Flores. Como historiador, sabia perfeitamente que estava no prazo-limite para aceder a documentação de cooperativas extintas havia já quase duas décadas, e a pessoas desse tempo capazes de lhe contarem o que os papéis não nos podem dizer. É um trabalho extraordinário feito sobre uma história também ela extraordinária de tentativa de defesa de comunidades locais face a ambições monopolistas de agentes económicos comandados à distância e com servidores locais, e aos constragimentos próprios dum período de guerra global e do regime político adverso. Quem ainda não leu esse livro de 1997, ou quem agora o releia de novo, há que notar o elogio feito à tenacidade dessa gente que a pé por caminhos impróprios do próprio nome levava até depósitos comunitários o leite do dia, ou da sagacidade de protagonistas como o Padre Mota ou o contabilista e mestre de engenhocas Freitas Júnior.

Pierluigi foi um percursor do turismo de natureza, criando os primeiros guias desta especialidade em todo o arquipélago. Publicados pela primeira vez há quase duas décadas, incluindo uma versão em língua inglesa, foram sem dúvida um instrumento bastante útil para quem foi passear a pé pela Ilha das Flores, e decerto continuam a sê-lo mesmo na era de mais modernos instrumentos cartográficos e de geolocalização, ou agora que muitos trilhos estão já devidamente assinalados e homologados. A quem o visse passar no mar de caiaque e caminhando despreocupadamente por caminhos silvestres posso eu assegurar que ele foi também um grande rato, um verdadeiro ratão de bibliotecas e arquivos, e tenho certeza de que folheou mais de um século de jornais da Ilha das Flores. Isto é muito patente na História dos Lacticínios, como o é no Perfil Histórico e Pedestre, livro de 2007, onde presta tributo a outros historiadores locais e regionais, cuja obra leu e aproveitou. Surpreendido com o seu contributo para a história insulana, Pedro da Silveira escreveu-lhe uma bela carta de estímulo e gratidão, pedindo-lhe mesmo que prosseguisse os seus trabalhos…

O seu livro sobre topónimos e povoamento das ilhas dos Açores, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, de 2016, consistiu numa reincidência nos estudos históricos da Idade Moderna numa altura em que a sua vida pessoal e a sua actividade literária pareciam ter-se transferido para outros campos. Pierluigi Bragaglia pôde manifestar aí uma tal capacidade investigativa que lhe foi atribuído o Prémio Daniel de Sá de 2017. Vinte anos depois da sua tese sobre os primórdios dos descobrimentos atlânticos, interessou-se pela coincidência de devoções religiosas e atribuições toponímicas num largo domínio oceânico, interligando em rede várias constelações ilhoas. Nos últimos anos, com múltiplas viagens à Indonésia, ensaiava pesquisas similitudes entre as Flores ocidentais e as Flores orientais, de que deixou apenas um primeiro esboço num artigo integrado nestes volumes.

Os oceanos são um contínuo indestrinçável, e a aventura humana neles na qual portugueses foram protagonistas históricos de primeiro plano, um tema fascinante e inesgotável. Agora pensem no que pode representar para um italiano que é ao mesmo tempo um jovem historiador e um aventureiro globe-trotter perceber que o lugar do mundo que ele confundiu com um paraíso terrestre teve na sua idade de ouro toda uma elite de mercadores pré-italianos, como o Luca de Cassena activo em Angra do Heroísmo e instalado paredes meias com a grande alfândega de produtos em moda na Europa vindos da Ásia, África e América do Sul… Mais ainda: que a famosa Volta pelo Largo, tão decisiva em séculos de navegação à vela no Atlântico, lhe passasse quase à porta de casa na Fajã Grande da Ilha das Flores, não podia ser indiferente ao argonauta fascinado por navegadores solitários e grandes velejadores com escala obrigatória pelo porto da Horta, a ponto de seguir os seus relatos em revistas da especialidade e biografias. Ao mesmo tempo, o ilhéu de Monchique, o ponto mais ocidental da Europa e o primeiro marco deste continente a quem lhe chegue por mar, foi para Pierluigi Bragaglia um inoxidável ponto de referência quotidiano, uma presença indicativa de esse lugar ser a última fronteira europeia da grande aventura humana dos descobrimentos marítimos, as tais ilhas na bruma na terra das ilhas de bruma…

Também por isso me parece que a sua vida nos Açores foi a fortuna do achamento desse tal mítico Tosão de Ouro da Antiguidade clássica, a que ele soube dar uma interpretação moderna ou pós-moderna. Pelo raiar do novo milénio Pierluigi Bragaglia foi solicitado amiúde para falar nos primeiros fóruns sobre turismo nos Açores, em que abordou de modo muito sagaz os limites do crescimento dessa actividade económica de grande importância para estas ilhas. O segundo volume reúne essas intervenções que merecem bem a atenção dos decisores políticos regionais, do governo à assembleia legislativa, dos principais municípios às mais pequenas freguesias. Há um bom lote de problemas que carecem de debate inteligente e sem preconceitos, por exemplo qual a maneira de fixar aqueles que vieram ver os Açores e pensaram em ficar, ou como se combate a desertificação humana numa região de natureza prodigiosa mas também agreste ou inclemente. Bragaglia também aponta pistas e novas profissões para se evitar o êxodo de jovens, se repovoarem as ilhas ou se reabilitar arquitectura popular.

Nestes dois livros agora editados, há muito para ler e aprender. Eles são uma dádiva aos Açores por quem veio de fora e os viveu por inteiro. Sejamos dignos desse tributo, retribuindo-lhe com a nossa leitura curiosa e atenta. É mesmo o melhor que podemos fazer…

Vasco Rosa    

 

Nas livrarias:

Livraria Solmar, Ponta Delgada

Livraria Companhia das Ilhas, Lajes do Pico

Livraria Folio, Angra do Heroísmo

À venda a partir de finais de Novembro:

Em Lajes das Flores – Câmara Municipal de Lajes das Flores

Em Santa Cruz das Flores  – Câmara Municipal de Santa Cruz das Flores

Para encomendar:

No continente, contactar o e-mail vr.janelasverdes@gmail.com

 

Perfil do Autor

Vasco Medeiros Rosa, lisboeta, 63 anos, editor, jornalista e investigador. Publicou Raul Brandão e os Açores em 2017. Prepara uma edição de dispersos de Pedro da Silveira para assinalar o seu centenário e um livro sobre o escultor Canto da Maya. Tem escrito para revistas e jornais açorianos e colabora regularmente com o Observador desde 2014.

Vasco Rosa

Vasco Medeiros Rosa, lisboeta, 63 anos, editor, jornalista e investigador. Publicou Raul Brandão e os Açores em 2017. Prepara uma edição de dispersos de Pedro da Silveira para assinalar o seu centenário e um livro sobre o escultor Canto da Maya. Tem escrito para revistas e jornais açorianos e colabora regularmente com o Observador desde 2014.

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