Flores, 20 anos depois
No dia em que escrevo, completam-se vinte anos desde que cheguei às Flores. Vinte e cinco horas de viagem no Golfinho Azul, partindo da Praia da Vitória, passando por Graciosa, São Jorge, Pico e Faial. No porão ia o meu Suzuki Samurai, carregado até mais não com coisas que achei essenciais. Em cima ia eu, combatendo ansiedades e vómitos.
Fui dos últimos a sair do barco, graças ao pai da Fabiana, que se perdeu nos corredores e não encontrava o caminho para o seu Peugeot, que estava a cinco centímetros do meu para-choques e não me permitia seguir para terra. A Fabiana veio a ser minha aluna nesse ano, mas acho que nunca lhe contei isto. Fica a saber agora. No caminho para Santa Cruz, já respirando árvores e hortênsias, não pude deixar de sorrir ao passar pela Caveira, nome tão mórbido como cómico quando aplicado a um lugar. Descarreguei tudo na residencial do Cassetes, que foi o meu quarto nesse ano. Nos dois seguintes, fui para o beco ao lado. Quando acabei de arrumar tudo, sentei-me na cama e o quarto começou a andar à roda. Apaguei-me.
Horas mais tarde, fui em busca de comida. Não tinha pontos de referência, por isso acabei no Minhocas. O José (outro que dali a dias se transformou em meu aluno) estava lá. Não tinha cara de ter idade para trabalhar ali, mas isso não interessava. Faziam hambúrgueres, mas Coca-Cola já não havia. Que seja. Enquanto comia, e à boleia da falta da bebida castanha, vieram-me à cabeça os avisos recebidos nos últimos tempos. Que não deixasse acabar o gás em casa. Que não andasse com pouca gasolina no depósito. Que tivesse reserva de comida em casa. Tudo por causa do inverno. Que tivesse cuidado com “elas” por causa da Doença do Machado, disse-me o Dr. Adriano Paim em plena Rua da Sé.
No dia 1, apresentei-me ao serviço ao mesmo tempo que a Helena, micaelense que tinha sido minha colega na universidade e também iniciava os três anos de colocação. Conhecemos a Professora Raquel. Ambos queríamos voltar para a ilha respetiva no fim do tempo. Eu voltei, ela não, tal como outros e outras que acabaram por lá fazer vida. Deram-me serviço de exames e disseram-me que tinha uma reunião dali a dias. No dia da vigilância, conheci o Paulo, a Carla e a Zulmira. No dia da reunião, conheci os meus colegas de departamento. Quando entrei na sala, era soldado raso; quando saí, tinha sido eleito coordenador… coisas das escolas pequenas.
A partir daí, foi um nunca mais acabar de trabalho e emoções. O mais importante de tudo? Os colegas, os alunos e o ganhar experiência. Rapidamente percebi que os colegas de trabalho seriam mais do que isso, seriam família. O Carlos e a Maria João, o Morais e a Joana, o Sérgio e a Lisete, o Marcelo e a Mónica… e o Manuel, a Beta, a Carla, a Fernanda, a Joana, a Maria José, a Graça… e o Henrique, o Cerquinha, o Paulo “Pai”… mais uns quantos que vieram nos anos seguintes, como a Helena, a Laura, a Elvira, a Vânia, a Sílvia, a Marlene, a Alexandra, o José Eduardo, o Hugo, o Ali, o Nuno, o Rui. Sem eles, tudo teria sido mais difícil.
Os alunos… eu não consigo falar dos meus alunos das Flores sem me comover. Hoje, são homens e mulheres feitos, pais e mães. Casaram uns com os outros, alguns bateram asas e foram parar longe da ilha, mas nunca saíram de mim. Foi com eles que aprendi a ser professor. Foi com eles que percebi como pôr em prática o que tinha aprendido, foram eles que fizeram de mim o que sou hoje. Quando lhes apareci à frente, tinha no currículo o horripilante ano de estágio e dois anos de Educação Visual (é, eu tinha habilitação suficiente… coisa que volta a estar na moda), mais uma temporada a lecionar na Universidade. Ou seja: tinha aprendido umas coisas de pedagogia, mas, enquanto professor de Português, nem tanto.
Foi a pedagogia do bom senso que me salvou. Isso e os alunos extraordinários que me couberam em sorte. Andreia, Marta, Solange, Fabiana, José, Fábio, Natacha, Flávio, Susana, Énia, Ivan, Franclim, Ana Sofia, Bruna, Mara… escrevo sem ordem nem nexo mas não continuo, pois a lista é grande. Acrescento apenas o Bruno e o Hugo, que foram meus alunos e hoje são meus colegas. Recordo grandes momentos nas aulas, situações divertidas (durante um teste: professor, posso mudar de lugar? Podes, mas porquê? Ora… este não sabe, este também não, não estou aqui a fazer nada…), situações delicadas (sabe, professor, esta aluna pode estar grávida…) e outras mais passageiras mas não menos importantes.
Fui para as Flores dar aulas, mas ao fim de um mês já era correspondente da Antena 1 e acabei por ser também da RTP, funções em que tentei transmitir da ilha uma imagem diferente, pela positiva. O José António, amigo e conselheiro, explicara-me, quando me queixei de que as pessoas pareciam esconder-se de mim, que estavam fartos de só se falar da ilha quando havia alguma desgraça, e foi isso que combati. Mostrei festas, procissões, paisagens, invasões de coelhos. Filmei uma passagem de modelos cuja cassete andou perdida nos aviões e, quando a reportagem foi emitida, a escola parou para ver. Nessa manhã, não houve aulas, houve Bom Dia.
Maus dias também houve. Uns de mau tempo, outros de mau feitio, alguns de mau caráter. Faz parte. E houve muito que se aprendeu à mesa. O Lita foi cantina e salão de festas. O Lucino’s foi tubo de ensaio psicológico. A Gare foi tubo de escape. O Hotel Café foi refúgio. Na discoteca nunca entrei.
Ao fim do meu tempo nas Flores, uma certeza: saí mais açoriano e menos tonto do que quando entrei. Há vinte anos não o podia imaginar, mas aqueles 1095 dias seguintes foram determinantes para o que viria a ser a minha vida. Obrigado, Flores!
Artigo publicado no jornal Diário Insular