Químicos e Paraísos Perdidos

Adicione aqui o texto do seu título

 Aqui há uns anos fiz um negócio de ovelhas com uma família que vivia isolada aí atrás de uma rocha, numa casa feita pela sua mão. Era gente simpática e trabalhadora mas tinham a mania do “sistema” e a sua vida, apesar de ter beneficiado sempre das condições e vantagem dele, era construída em volta de lutar contra o sistema, escapar ao sistema, denunciar o sistema. Isto cansa, nas outras pessoas todas gera fadiga, neles gerou paranóia.

Quando concluímos o negócio e fui lá levar as ovelhas perguntei por mensagem se precisavam de algum recado ou queriam que levasse mais alguma coisa, já que eles pouco desciam à vila. “Sim, pasta de dentes da ilha, se faz favor!”. Fiquei surpreendido, perguntei onde é que isso se vendia e o que era, responderam que se vendia na farmácia, era “pasta de dentes natural”. Pasta de dentes da ilha? Será que já se produzia cá pasta de dentes e eu não tinha ouvido falar nisso?

Lá fui, e perguntei ao farmacêutico se tinha pasta de dentes natural, dizendo que me tinham pedido assim e nem sabia bem o que era isso.

“Só se for a Couto”, sugeriu ele.

“Isso, deve ser isso”

“Há muitas pessoas que preferem esta porque não tem químicos”. O rótulo da Pasta Medicinal Couto:

Há muitos anos que convivo com níveis grandes de iliteracia científica, eu não sou nenhum cientista mas pelo menos sei o que é um químico. As enormidades que ouço regularmente da parte de amigos e conhecidos meus “anti sistema” nem me incomodam , na medida em que ser contra o sistema não faz uma pessoa má, porque alguém tem que ser do contra senão isto era uma chatice e porque tenho sentido de humor. Ouvir descrever esse produto como “não tendo químicos” já me incomoda, mas pouco, porque adoptei a posição o mais neutra possível, convencido de que o futuro não é racional e isto é tudo para arder.

Uma vez ainda tentei fazer ver que pelo raciocínio que estavam a aplicar a determinado produto, alarmados porque se tinha demonstrado que era cancerígeno e venenoso, podiam dizer o mesmo das laranjas ou do chocolate, tentei fazer perceber aquela verdade vetusta que diz que é a dose que faz o veneno. Não passou, também não insisti porque creio que não vale a pena prosseguir discussões com quem não entende uma coisa tão básica, não tenho espírito nem conhecimentos nem paciência para ser missionário ou apóstolo de seja o que for.

 

Conheço uma senhora que passou os últimos 20 anos numa cruzada contra “os químicos”. Vive num sítio virtualmente livre de poluição atmosférica como é esta ilha, cultiva a sua própria comida, não come carne e só come o peixe que pesca e ovos de galinhas alimentadas a cereais biológicos, que vêm de uma “loja biológica” no continente (a preços exorbitantes e a emitir co2 no transporte mas isso aqui não interessa nada), tal como a farinha para o pão. Come ervas, frutos e tubérculos que cultiva consoante as fases da lua e bebe beberragens obnóxias só porque as particularidades de determinada planta são conhecidas desde a idade média. Não compra nada nas lojas excepto talvez sal e azeite, uma dieta que levava o companheiro quase às lágrimas mas ele não tinha outro remédio.

Uma dieta radical é uma coisa, mas ela não se fica por aí, afirma que todos os produtos que nós comemos são veneno, somos todos parvos por comer o que se vende nas mercearias, as companhias que fabricam e distribuem comida querem-nos matar, a medicina moderna é uma fraude total, as farmacêuticas estão em liga com os médicos, as produtoras de comida e os governos e todos, no fundo, nos querem doentes ou mortos. Bons, sãos, autênticos e saudáveis são os saberes ancestrais, de quando a esperança média de vida ia pelos 35, a mortalidade infantil era de uns 50% e se morria de cólicas ou por uma ferida num pé. Ah, os bons velhos tempos antes do sabonete e dos antibióticos, da dieta composta por 6 géneros alimentares, todos biológicos.

Encontrei-a um dia de regresso do centro de saúde, tinha sofrido imenso com problemas da tiróide, sofreu a ponto de se resignar a ir ao médico, tinha sido medicada mas não correu bem.

-Então, estás melhor?

-Muito melhor, mas só quando deixei de tomar os medicamentos!

-Pronto, nunca mais tomes medicamentos nenhuns! disse eu com a veemência possível. Então o que se passou foi que a terapia prescrita aqui não teve efeito nenhum, ela telefonou ao pai de uma amiga que é médico em França (a medicina é uma fraude mas a medicina francesa é menos fraudulenta que a portuguesa) que lhe disse que o que ela estava a tomar não era adequado para os sintomas, estava a causar outros problemas. Parou de tomar os medicamentos, melhorou, nunca em momento nenhum lhe ocorrendo a possibilidade de que falando mal português como ela fala, um médico pode ter dificuldade em percebê-la e que além disso existem médicos menos competentes que outros e não é por isso que a medicina é uma fraude.

Tão cedo melhorou por deixar de tomar os medicamentos como tornou a piorar do problema original e foi então a S.Miguel fazer uma TAC, num aparelho operado por um xamã e recuperado da antiga sabedoria Maia que utilizamos em noites de quarto crescente depois de energizar a sala com cristais, para ver dentro dos corpos das pessoas. Depois desse e outros exames complementares, depois de finalmente ter ido a um hospital central para ser diagnosticada em vez de se tentar fazer entender em português miserável a um médico que talvez não esteja no centro de saúde da Ilha das Flores por simples acaso, regressou.

Resisti à tentação de lhe perguntar: “Então, 20 anos de tudo o que é bom e faz bem, sempre a uma distância segura de tudo o que faz mal, e acontece-te isto? Tanta coisa e afinal ficas doente como os outros? Aprendeste alguma coisa com isto ou não?” O mais provável é não ter aprendido nada e vai continuar a comer ervas e raízes do quintal e a ralhar contra o mundo moderno e as suas fraudes, na ilusão de que o modo como vive e o que come a protegem do inevitável.

Há muitas e claras vantagens (bem documentadas por essa ciência e medicina “fraudulentas”) em ter uma alimentação equilibrada que privilegie o fresco em detrimento dos alimentos processados e dos produtos de uma agricultura menos intensiva em vez dos produtos da agricultura industrial, que depende de pesticidas, herbicidas e fertilizantes. Isso está fora de questão. Também está provado que a carne e o peixe não são essenciais ao funcionamento do corpo humano, para os veganos isto é uma revelação filosófica mas é um simples facto implícito na nossa condição de omnívoros. Não comer carne, além de nos livrar (aqui não é sarcasmo) de contradições éticas e morais contribui, ainda que muito pouco, para menos desmatamento, menos emissões de metano e melhor utilização dos cereais e água.

Para observar isto e cuidarmos mais da saúde e do ambiente não temos que embarcar em radicalismos, explicações binárias, cruzadas pessoais ou conflitos com o próximo e a sociedade em geral. Não temos que ser paranóicos, diabolizar o que não percebemos bem nem meter na nossa vida níveis de stress enormes, como no caso da senhora de que falei que vive obcecada com aquilo e esse stress e tensão permanente contribuíram, tenho quase a certeza, para a mandar para o hospital. Tal como esse stress, paranóia, activismo e radicalismo contribuíram para que a família a que me referi no início deste texto tivesse abandonado a ilha, em guerra com todos, sem amigos, antagonizando vizinhos e autoridades e finalmente saindo em desgraça e revolta por o Paraíso não ser como o imaginavam. Nunca é.

Perfil do Autor

Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.

Jorge Ventura

Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.

Crónicas Geral Sociedade

Flores, 20 anos depois

Flores, 20 anos depois No dia em que escrevo, completam-se vinte anos desde que cheguei às Flores. Vinte e cinco horas de viagem no Golfinho Azul, partindo da Praia da Vitória, passando por Graciosa, São Jorge, Pico e Faial. No porão ia o meu Suzuki Samurai, carregado até mais não com coisas que achei essenciais. […]

LER MAIS
Distintos Florentinos Geral

PADRE INÁCIO COELHO

(1575-1643) Fundador do Convento de S. Boaventura   Nasceu em Santa Cruz das Flores por volta de 1575, filho de Mateus Coelho da Costa, Capitão-mor das Flores e do Corvo, e de sua primeira mulher, Catarina Fraga (por sua morte, ocorrida a  13 de Agosto de 1594, Mateus Coelho da Costa voltaria a casar, desta […]

LER MAIS
Cultura Geral Sociedade

Um acto simbólico

Centenário de Pedro da Silveira (1922-2022) A Eng. Manuela Meneses, da direcção da Casa dos Açores em Lisboa, inaugura a placa no prédio em que viveu Pedro da Silveira. A placa no prédio 14 da Rua Freitas Gazul, em Campo de Ourique, Lisboa. Presentes conversam sobre o homenageado. Manuela Meneses lê mensagem enviada por Luís […]

LER MAIS