Isto é o título
Desde que fui pela primeira vez assinante das hoje extintas revistas “Volta ao Mundo” e “Grande Reportagem” que o mundo mudou muito, basta dizer que não havia telemóveis, internet, gps terrestre ou companhias aéreas low cost. Havia quatro canais de televisão e além da tv e rádio, toda a informação era em papel. Nessa altura os repórteres de viagens não só tinham a vida muito mais dificultada como escreviam para pessoas com um nível inferior de acesso, eu por exemplo gostava de ler aquilo porque estava fora do meu alcance não só ir e ver como perceber e explicar, e havia sempre sítios inóspitos e obscuros, daqueles que não são esquecidos porque nunca chegaram a ser lembrados, mesmo para miúdos cromos da geografia que liam atlas em pequeninos.
Hoje não só é muito maior a percentagem de pessoas que viaja (grande parte delas viaja mas sem se esquecer de protestar contra as emissões de CO2) como nem vale a pena lembrar a explosão de informação que temos na ponta dos dedos. Em meia hora podemos ver uma vista de drone sobre Sófia, ler um blog sobre cozinha búlgara, ler os jornais búlgaros, ler sobre a História da Bulgária, escolher um filme búlgaro, ver o que diz a sabedoria colectiva de milhares de turistas sobre a Bulgária e por fim marcar um bilhete de ida e volta para a Bulgária.
O trabalho que tinha um jornalista/repórter a planear uma viagem para uma reportagem era no mínimo de semanas mas hoje numa tarde pode fazer-se isso. O jornalista mais dedicado passará mais tempo a estudar o objecto da sua reportagem, mas tenho a impressão de que a maior parte das vezes 3 parágrafos da wikipedia fazem o serviço no que toca a contextualizar o sítio e dar o apontamento histórico. No caso dos Açores, além da wikipedia, um resumo condensado das Ilhas Desconhecidas e do Mau Tempo no Canal basta para preparar o jornalista para falar sobre isto com as citações adequadas, nunca falha. O resto são sobretudo clichés, e admira-me que o nível e fórmula de escrita dessas reportagens não tenha evoluído em 30 anos.
A Visão mandou há uns tempos jornalistas aos Açores, ou os Açores pagaram à Visão para cá vir, e fizeram um especial dedicado ao Arquipélago. Devia ser uma edição comemorativa porque usam o mesmo sub título há 30 anos, o apelo da natureza, que é o segundo mais fácil a seguir a escrever só “a natureza”. Esta coisa da natureza e dos mil lugares comuns que ela faz florescer quando se fala das ilhas sempre me intrigou um pouco porque esta é das paisagens mais humanizadas que eu conheço, fora de centros urbanos, obviamente. Grande parte da beleza disto é precisamente o modo como o homem se incrustou aqui, resistiu à natureza e modificou a paisagem. Adiante, a paisagem que escolheram para capa não é natureza modificada, é um sítio que deve ser assim há séculos, é aqui nas Flores e tornou-se uma imagem de marca da ilha, o Poço da Ribeira do Ferreiro.
Para darem uma ideia boa das Flores estes jornalistas falaram com 14 pessoas. Conheço pessoalmente 12 dessas 14 pessoas e tanto os naturais como os imigrantes amam a ilha, vivem e trabalham na ilha, sabem sobre a ilha e são pessoas com histórias interessantes para contar. A questão é que desses 14 só UM não vive do turismo, o Sr José Lizandro, que deles todos é o que conheço melhor e com quem passei mais tempo. E mesmo ele, tal como os outros 13, está habituado a falar com visitantes, passava parte do tempo no Museu Baleeiro no porto das Lajes, é uma peça de museu viva.
Isto para dizer que se queremos fazer um retrato fiel de uma realidade não podemos ir perguntar aos que querem que o retrato saia o melhor possível, àqueles cujo trabalho e modo de vida passa por cuidar da imagem do sítio ou que querem que o retrato seja da visão particular que têm do objecto. Como sempre desde que me lembro, estes jornalistas e escritores de viagens falam com estas pessoas: quem lhes aluga o alojamento ; guias turísticos; donos dos restaurantes , taxistas e empregados das “atracções” , ou seja, os jornalistas preferem, por preguiça ou falta de imaginação, falar com quem está lá para falar com eles.
É o mais fácil, perde-se a conta às reportagens (e até livros) cheios de citações de taxistas, bartenders e recepcionistas, que até podem ser uma amostra interessante mas têm o problema de estarem ali para isso, se é que me estou a fazer entender.
Estes que vieram às Flores a convite para fazer publicidade, “dar a conhecer” a ilha, não foram ver uma ordenha e saber como se prepara o lavrador para o Inverno. Não foram à escola falar com um professor, saber como é estar a trabalhar a mil quilómetros de casa e numa realidade tão diferente do continente. Não foram ao porto em dia de navio. Não falaram com um pescador, não foram a uma Câmara querer saber das intenções e perspectivas das autarquias, ou à Santa Casa ver de perto como é uma ilha envelhecida. Não foram falar com algum desportista saber como é estar tão longe dos adversários e quão difícil é participar em competições. Não foram falar com um polícia sobre o seu trabalho aqui ou com um doente ou médico sobre como é o processo que leva a transferir um doente para o hospital mais próximo, que fica a 45 minutos de avião. Nem a uma só destas 14 pessoas com quem falaram perguntaram de que é que gostam menos aqui, o que é que é mais difícil, do que é que sentem falta. Podiam perguntar-se o porquê desta ilha ser tão paradisíaca e espectacular e de apesar disso continuar a perder população. Não, vieram fotografar e descrever o Paraíso e deram-lhe chapa 5 como fazem todos.
Vão-me dizer, com razão, que o artigo da Visão não é uma reportagem de fundo, é uma divulgação turística. Ainda assim, porque é que não se procuram visões mais espontâneas e originais? Visões que não estão comprometidas à partida com a visão paradisíaca que se pretende transmitir e vive sobretudo de lugares comuns? Não é só falar dos defeitos e problemas, é procurar a perspectiva e a história de quem não tem discurso preparado e o incentivo alinhado, é tentar encontrar as belezas pela voz de quem cá vive o dia a dia sem se importar muito com o que os visitantes pensarão disto.
Isto dura há 30 anos e não vai mudar, agora são menos os jornalistas e mais os “influenciadores” que chegam para 3 dias a pensar que “ver” é igual a “conhecer”, já com os seus “spots” referenciados em mapas Google, vão onde vão todos, tiram as suas selfies narcisistas com os melhores filtros e passam 1/3 do tempo à procura de wifi e rede , a dizer ao resto do mundo que estão aqui e a contar likes, em vez de arrumarem o telemóvel e apreciarem o facto de estarem aqui, com tudo o que isso realmente implica.
Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.
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