Isto é o título
A vida, como diz o lugar comum, é feita de escolhas. Mas não está ao nosso alcance escolher os amigos. Descobrimos os amigos, por vezes por acidente, quase sempre com surpresa, às vezes num cruzar de conversas, por acaso entre duas piadas ou duas historias mal contadas. O Pedro, conheci-o não por acaso mas acidentalmente. Encontrámo-nos um dia, na sua casa no limite do areal que protege as velhas moradias do mar agreste da costa atlantica, repleta de objectos mais ou menos palpitantes, recordações de coisas antigas mas vivas, com uma historia por trás, com um significado nem sempre oculto, não arrumadas e mortas, mas apressadas e prontas a saltar para o nosso colo para contarem as suas historias, surpreendentes e claras. Entre copos de gin, chá preto, notas de piano desafinado e o riso luminoso da Mané que nos lembra um tempo longinquo mas sempre presente, voltamos à infância, às águas longínquas de um mar que partilhamos, que faz a nossa intimidade. Pedro foi o percursor, o Moonwalker, como lhe chamou o Gonçalo Cadilhe. Ele estava lá, antes de qualquer outro, com o seu riso brilhante, como um desafio permanente da Vida com maiuscula, que se opõe à pequenez humana do aceitável, dos limites do convencional, que o Pedro nunca deixou de ignorar. Não escolhemos os amigos, cruzamo-nos com eles e eles entranham-se. Esforçamo-nos por nos livrar deles sem o conseguir, sem poder escolher.
Pouco depois da ascensão ao poder desse provinciano, seminarista e tacanho que afundou o país numa depressão que durou várias décadas, alguns militares decidiram que a honra valia mais que o dever, e tentaram empurrar o espectro da cadeira de onde ele haveria de cair anos mais tarde. Não resultou, não por falta de coragem pessoal dos intervenientes, mas porque os interesses corporativos da maioria se sobrepuseram ao amor pátrio dos mais dignos. Acabaram presos e deportados. O pai do Pedro foi empurrado para o local mais longínquo e isolado do país, a Ilhas das Flores, no grupo occidental do arquipélago dos Açores. Instalado na antiga casa da Alfandega, no Porto Velho de Santa Cruz, o bom capitão rapidamente grangeou simpatias e amizades. Era um homem que gostava das pessoas e de comunicar com elas. Gostava de ensinar e tinha muito por onde o fazer. Gostava de ajudar e não faltava por onde o poder fazer também. Era gente que se entranhava no nosso coração, dizia Celestino Flores, com uma lágrima ao canto dos olhos, do homem que lhe tinha ensinado inglês e passado longos serões a contar-lhe historias de lugares longínquos, de costumes estranhos mas não piores que os nossos. Pedro estava em Lisboa com a mãe, enquanto o pai sofria o exílio, pescando da varanda da sua casa, sobre a enseada do porto de abrigo. Um dia soube que a casa do Monte das Cruzes estava vazia, abandonada pelo medo e pela superstição, rodeada de historias onde a verdade e a mistificação se misturavam. Ninguém queria ir para lá, por isso o preço do arrendamento era quase ridiculamente baixo e, comparada com a exígua casa da Alfandega, era um palácio. Contra os conselhos de todos, o militar caído em desgraça, que não se deixava facilmente influenciar por velhas historias de fantasmas e maldições, mudou-se para a casa assombrada.
Pedro em Lisboa, com 9 anos de idade fazia progredir como podia a sua jovem carreira de iconoclasta. Durante uma saída clandestina de trotinete, cuja utilização fora de casa a mãe proibia literalmete, caiu, fez um ferimento grave num pé que escondeu durante semanas, para não sofrer as represálias maternas. Por fim, as dores e o mau cheiro acabaram por chamar a atenção da mãe. Levado ao hospital, a grangrena estava próxima do extremo, o risco de amputação era eminente.
A notícia chegou a Santa Cruz e rapidamente as pessoas começaram a estabelecer relações entre o acidente da criança e a mudança do senhor capitão para a casa do Monte das Cruzes. A estima pelo militar era grande e justificada. Tentaram convencê-lo pela diplomacia, mas ele recusava aceitar a superstição como explicação para a grave situação da criança. Cartesiano, recusava ceder às mirabolantes angustias dos florentinos de Santa Cruz. Por fim e como para grandes males há que escolher grandes remédios, uma delegação de homens robustos e determinados dirigiu-se ao Monte das Cruzes e, ignorando os protestos do militar rebelde, levaram todos os seus pertences de volta para a Casa da Alfandega e fecharam a velha casa assobrada com correntes . Assunto encerrado.
Pedro foi operado e, salvo da amputação, recuperou sem sequelas. Para o povo de Santa Cruz não havia dúvidas sobre os motivos da milagrosa cura do pequeno. Mais crescido, Pedro veio dezenas de vezes a Santa Cruz, onde fez amigos, onde espalhou ventos e tempestades com o seu entusiasmo, a sua empatia e as mergulhadoras francesas, lindas de morrer, que se despiam sem preconceitos na rampa do porto para vestir os fatos de mergulho.
Com um copo de Buldog numa mão, a outra sobre as teclas envelhecidas do piano que, depois de ter estagiado vários anos no Hot Club de Lisboa continuava a responder afinado às solicitações do dono, Pedro dizia melancólico : só tenho pena de não ter passado mais tempo com aquela gente…