Isto é o título
Num distante mês de Julho, com o céu iluminado pelo sol de verão e a ilha a transpirar o calor húmido da terra, aterrámos, cheio de sacos às costas, no aeroporto de Santa Cruz. Descendo do avião como quem chega ao cais para apanhar o barco e ele não está lá, a terra firme era um ponto de passagem e não um destino. O que se passava à nossa volta tinha, nessa altura, apenas o interesse relativo associado aos imprevistos e dificuldades ocasionados pela chegada a um local desconhecido.
O arquipélago não era já um local desconhecido. Depois da Terceira, de S. Jorge, da Graciosa e do Faial, as Flores eram o quinto destino da Região, em menos de três anos. A Aidinha recebeu-nos curiosa, sem nos levar a sério. Ria-se das perguntas, das dificuldades adivinhadas ou inventadas, com o eterno « vai-se arranjar ». Nenhum de nós sabia, nesse momento, que esse dia marcava o início de uma grande amizade entre os dois, marcada pela admiração e uma profunda gratidão. Guiados à casa da Telma na praça, ficámos instalados no rés-do-chão, com janelas a dar directamente para a rua, a fazer o serviço de terminal logístico às quantidades intermináveis de material de mergulho, que passavam directamente da cozinha para a pick-up, ferrugenta mas operacional, emprestada pelo Braga. Com a proprietária instalada no piso de cima, andávamos pela casa como se tudo aquilo fosse nosso e quanto mais barulho fazíamos, mais disparates dizíamos, mais a Telma ria, dizia palavrões e nos empurrava na direcção da parvoíce. Tudo era uma festa sem limites: o peixe, os jantares, as pessoas que iam e vinham, que nos ensinavam, ou que aprendiam connosco. Um dia, sem motivo algum e sem anúncio prévio, o Dionísio chegou com uma panela de cracas, que motivou de imediato uma galhofa extraordinária: « Vamos comer isto? Deves estar a brincar! ». A ignorância é sempre atrevida. A Telma lançava olhares furiosos e escandalizados, à mistura com mais uma mão cheia de novos palavrões. O Dionísio exibia o seu sorriso característico, irónico, meio lateral, com a expressão de quem diz: « esperem aí que já vão ver… ». Rendidos às cracas, ao vinho e à algazarra, já nem me recordo de como a noite terminou.
A rotina era simples e sempre sem alterações: mar ao acordar e até não poder mais, ao final do dia, até inanimado na cama, para acordar horas mais tarde e repetir a sequência. O mar empurra os marinheiros para ao mar, não os empurra para terra. Quanto mais o mar das Flores nos desvendava os seus mistérios, mais longe queríamos ir nessa intimidade e mais a dificuldade se transformava em desafio. Havia lá fora as baixas, esses locais de mistério e imprevisto, guardados pela distância, pela dificuldade e pelo segredo. A Pedra Velha estava lá, à nossa espera, tínhamos a certeza, mas não era fácil encontrá-la, sobretudo com os reduzidos meios desse tempo. Havia um barco que pescava lá por perto, o respeito e a prudência obrigava a que não nos aproximássemos demasiado, por isso ficámos a uma distância generosa, com o frágil pneumático a balançar na corrente, atrás de nós. Peixe havia por todo o lado, a única dificuldade era escolher. Nós queríamos os grandes, mas havia sempre um maior que o anterior, que passava, inacessível, na distância. O tempo passava e o peixe teimava a não entrar para o barco. Ao longe, o olhar treinado do homem dentro do barco de madeira observava-nos, no nosso o nosso vai e vem sem peixe. Numa altura que subimos para o barco para descansar, o homem que pescava esbracejou na nossa direcção, gritando qualquer coisa, incompreensível pela distância. Gesticulava energicamente e parecia zangado ou aflito. Sem que se compreendesse muito bem o motivo da gesticulação, receámos que achasse que estávamos a uma distância demasiado curta da sua actividade, por isso deslocámos o pneumático aumentando a distância ao pescador de uma ou duas centenas de metros. Mas a manobra pareceu não surtir efeito. Poucos minutos mais tarde o pescador aproximou-se de nós e, gesticulando ainda, disse-nos: « o peixe não está aí onde vocês andam. Os peixes grandes estão do outro lado, lá à minha beira. Vão para lá que é ali que vocês apanham bons peixes ».
Não queria acreditar. Mestre Nica, enervado mas com uma larguíssimo sorriso, vinha ter connosco para nos ajudar na pesca. Certamente, depois de observar as nossas derivas na água e ter percebido que o tempo passava sem que apanhássemos um único peixe, decidira ter que dar uma ajuda. Não havia mais nada ali que pura generosidade, calor humano e entusiasmo pela vida no mar. O que se passou ali, naquele momento, teve o efeito de um murro no estômago, do regresso brutal a um tempo em que os Homens colocavam mais energia a se ajudar uns aos outros do que a se agredirem. Em que o valor de um homem se media pela sua humanidade e não pelo seu dinheiro ou poder. Nesse dia muita coisa mudou na forma de ver o mundo, com essa mudança, arrastei comigo o Mestre Nica e o mar das Flores, que ainda cá estão, no sítio onde guardamos tudo o que tem valor.