“Histórias das Minhas Gentes #18”

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A semana do Divino Espírito Santo era vivida com grande intensidade. Tudo começava na semana anterior com as limpezas da casa do Divino e do açougue, que é o espaço reservado ao partir da carne. Todos os anos no final da festa eram sorteados os nomes dos cabeças para organizar a festa no ano seguinte. Com a casa limpa e o altar enfeitado com flores e castiçais, no domingo era feita a mudança da coroa da casa particular que a esteve a iluminar até à sua Casa, assim como as bandeiras. Na segunda feira era rezado o terço, na terça há as alvoradas e assim sucessivamente até ao fim de semana seguinte. Era feito o levantamento porta a porta para arrolar a carne. Na sexta feira o gado para abate seguia até ao Serro. Mesmo em terreno que na altura pertencia aos Franceses, eles permitiam que fosse ali o abate dada as tradições intrínsecas na freguesia. Os meus pais não deixavam assistir ao abate por considerarem violento para nós aquele cenário. O ato era anunciado por foguetes que estalavam no ar. Ouvíamos os tiros de longe, tapando os ouvidos. Depois já podíamos assistir ao desmanche que era feito sobre folhas de cana roca. As peles eram retiradas e separadas. Havia mulheres com panas e cal à espera das dobradas que depois eram levadas para a ribeira para serem lavadas. Iam para a ribeira do moinho, onde haviam boas pedras para as esfregar e a água corria límpida. Os animais mortos eram partidos em quatro. Nunca vi faltarem braços disponíveis para carregar a carne até ao açougue. Atrás dessa romaria iam os foliões cantando graças ao Espírito Santo. Depois os homens mais ajeitados a essa arte, partiam e separavam a carne, em pesos de dois, de quatro, de seis, conforme a lista do rol. No sábado de madrugada toda a gente da freguesia ia levantar e pagar a sua carne. Da dobrada lavada eram feitos molhes temperados e cozidos que faziam a delícia da tasca à noite. As patas eram chamuscadas para fazer mão de vaca com grão. Não faltavam as iscas, os tremoços, as favas para venda no açougue que à noite para a festa virava tasca. A tasca era um espaço na altura quase reservado aos homens. Lembro me que se queria comer alguma coisa tinha de pedir ao meu irmão para ir, ou ao meu pai ou avô. "Meninas não vão à tasca".

No sábado o Rei da coroa (rapaz convidado para o efeito) levava a coroa pela freguesia a entrar em todas as portas, acompanhado pelos alferes das bandeiras e pelos foliões. Junto ia uma junta de bois com um carro de bois enfeitado que transportava uma arca de madeira que servia para recolher as ofertas dos irmãos. Muita massa sovada, batatas, abóboras, fruta era oferecida. Essas ofertas por norma eram divididas pelos foliões, que às vezes ofereciam de volta para arrematar e dar o dinheiro à festa. Ao meio dia o almoço era oferecido a quem tivesse acompanhado o percurso e era composto por pão, massa sovada, manteiga, queijo, café para os adultos, sumo para as crianças.

No domingo era dia de levar o Espírito Santo à Missa. Por norma essa procissão era feita com meninas vestidas de branco. Cheguei a levar uma fitinha, uma bandeira e quando cresci cheguei a levar também a coroa, mas nunca fui rainha da coroa. Os meus pais as vezes diziam que isso era para as filhas dos "senhores". Na altura eu não entendia isso. Agora sei que eles queriam referir -se que eram um lugar a ocupar pelas filhas das famílias mais abastadas.

Importante mesmo é que eram dias de festa, de convívio, de partilha e de uma fé enorme que já não se encontra nos dias de hoje.

Perfil do Autor

Nascida a 08 de maio de 1979, natural de Santa Cruz das Flores, fez ensino primário na freguesia de Ponta Delgada, ilha das Flores onde residiu durante a sua infância e juventude. Concluiu o ensino secundário na Escola Básica e Secundária da ilha das Flores. Foi subdiretora do Jornal As Flores entre o período de 2006 e 2007, assumindo depois o cargo de diretora do mesmo jornal entre o período de 2008 a 2012.

Atualmente é assistente técnica no Município de Santa Cruz das Flores, mediadora de seguros, colaboradora no jornal digital 9idazoresnews e correspondente da RTP/Açores.

Maria José Sousa

Nascida a 08 de maio de 1979, natural de Santa Cruz das Flores, fez ensino primário na freguesia de Ponta Delgada, ilha das Flores onde residiu durante a sua infância e juventude. Concluiu o ensino secundário na Escola Básica e Secundária da ilha das Flores. Foi subdiretora do Jornal As Flores entre o período de 2006 e 2007, assumindo depois o cargo de diretora do mesmo jornal entre o período de 2008 a 2012. Atualmente é assistente técnica no Município de Santa Cruz das Flores, mediadora de seguros, colaboradora no jornal digital 9idazoresnews e correspondente da RTP/Açores.

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