“Crónica da Fajãzinha #3”

Isto é o título

Depois de um fevereiro frio na Fajãzinha e nas Flores deslocamo-nos num roteiro pela freguesia saindo do Canto em direção ao final do primeiro trimestre de 2021. A longa rua de habitação está toda ela praticamente vazia de ocupantes. Desocupada quase como o nosso Aeroporto esteve durante sete dias consecutivos no passado mês. Aviões ninguém os viu, tal como a rádio com muitas horas sem sinal por esta terra. Nem a Antena 2 habitué sobrevivente de apocalipses escapou ao ensurdecedor silêncio da sua frequência. Descemos em direção ao Engenho deixando para trás o Pico Redondo como o país espera ter deixado o pico da pandemia. O engenho mais difícil de desmistificar será sem dúvida o solucionar de tudo o que daqui deriva. Precisamos de muita sabedoria como a dos mais experientes. Aconselhar-se com estes é sempre um bom mote e é nesta rua inclinada na Fajãzinha que encontramos o mais ancião de todos nós, José de Freitas Valadão Eduardo, conhecido por José Raimundo, no auge dos seus 89 anos de idade.

 

Chegamos ao Outeiro (onde está o mais alto e também aquele que já foi “o mais forte das Flores”, José Valadão) flanqueando as duas Canadas que podem ser ou Pequena ou Comprida. Se ao neto não se lhe herdou a força, resta a escrita para se fazer à vida, essa, por vezes, "mais larga que comprida". E prega-nos muitas partidas por isso queremos registar neste meio a história do momento. O planeta soma uma vagarosa contagem no que diz respeito à vacinação total contra a Covid-19. Em Portugal já foi administrada pelo menos uma dose da vacina a 5,63% da população. Mas no nosso mundo, na Fajãzinha, a percentagem é mais alta, de 12% (o que corresponde a nove felizes contemplados). E uma palavra com duplo sentimento aos corvinos. Em primeiro lugar a felicidade por esta ilha estar muito perto de conseguir o que se espera ser a imunidade de grupo. Ao invés, a tristeza de termos visto partir um homem que honrou o lugar onde nasceu. Precisamos de um Manuel Rita em todos os cantinhos que se querem fazer ouvir. Distintamente Manuel Rita, do Corvo, conseguiu o seu propósito.

Pelo meio, ou melhor a meio canal, não posso deixar escapar o que parece ser uma monarquia náutica a Ocidente. Os “monços” dizem, porque oficialmente ninguém com coragem o admitiria, que foi mandado parar em mar alto o nosso navio Malena a fim de atracar primeiro nas Lajes o barco que abastece o Corvo. Meus amigos das Flores e do Corvo: isto parece a batalha naval e a cada tiro menos força tem o Grupo Ocidental.

Para continuarmos ao nível do mar o percurso implica chegar ao Moldinho. Lá por baixo vemos o sargaço, outros vêem a erva patinha. Do primeiro ninguém tira sustento neste tempo contemporâneo. Já da segunda alga, da alimentação para a mesa do restaurante da nossa terra faz-se chegar um sabor do oceano a muitos dos que nos visitam. Um dos donos, não sendo dos mais altos do nosso lugar, é sem dúvida um dos maiores empreendedores e mensageiros da nossa Fajãzinha. Fala-vos de José António Corvelo que me vai perdoar a discriminada menção física contrastando com a sua evidente capacidade diligente.

 

E subimos. Ao ponto mais alto, à Ladeira. No da ilha, além de registadas temperaturas inferiores a zero graus Celsius em vários carros florentinos, nevou pela segunda vez em três anos. Aliás, nem foi preciso subir até ao Morro para ver o snow. E ainda há quem não acredite em alterações climáticas!?! Ainda mais a cima, mas da freguesia, no Portal, vemos a paisagem mais extasiante das Flores. Contemplamos, simultaneamente, deste local o mais ocidental marco lusitano, o ilhéu do Monchique. Engraçado como as Flores é a entrada mais a oeste da União Europeia, mas temos uma fronteira que só pode ser arrematada à moda do Lajedo como o “Calcanhar do Mundo”. Só nesta terra, à margem da lei, tivemos desde sempre sem controlo oficial do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Finalmente teremos essa missão, ao que parece, assegurada pela Guarda Nacional Republicana. Veremos se poderá estender o serviço a um aeroporto que continua “No Entry” para voos exteriores ao Espaço Schengen.

 

 E do miradouro descemos, agora num caminho à regional, até ao nosso Ramal. Nesta zona, ainda cá por cima, instalaram-se as antenas de telecomunicações das Fajãs, embora este mês, por vezes, o sinal se tenha perdido durante a noite. Consequências da fustigação que a nossa ilha tem sofrido este inverno. Além do frio, do granizo e da neve, o vento foi recorrente, quiçá razão para “lugar ventoso, lugar sem repouso” ter passado dos provérbios à baixa fixação na ilha. Posso garantir-vos que se o F.C. Porto tivesse jogado na ilha das Flores em fevereiro a percentagem de penalties era ainda mais elevada conjugada a força do vento que por cá registamos e a atração gravitacional dos seus jogadores. Creio que terá sido Jorge Jesus a citar Einstein, em épocas vitoriosas, pelo que é sempre bom relembrar dias divertidos.

 

Temos, igualmente, por estes lados um caminho do novo século, contingências das desgraçadas derrocadas de 2010, que nos faz chegar logo à Falca. Uma entrada abrupta e diferente numa freguesia que há uma década atrás foi ajudada em primeiro lugar por elementos da Proteção Civil. As forças que nos garantem a prevenção e coordenação de esforços em casos de emergência e calamidade comemoram hoje, 1 de março, o seu dia Mundial, efeméride aplaudida com agradecimento por todos nós.

 

Percorrida uma curta descida, transportando-nos em direção ao centro, às Figueiras encontramos uma entrada em que não se vê um figo, literalmente. Nem no carro se vê a estrada durante uns segundos, nem ao lado figo algum. E chegamos ao Rossio. Na `Gran Plaza` da Fajãzinha, onde tudo se arquiteta, é onde vive a mais nova do nosso lugar, a Ema.

 

Dentro da Fajãzinha conhecemos outra com o mesmo nome. Fica no extremo sudoeste da freguesia, mas a Ponta do momento é outra, a da Fajã. Com essa somos solidários e como tantas outras Açores fora importa reformular toda uma legislação obsoleta e desproporcionada face à realidade geográfica destes locais específicos. Caso contrário caímos sistematicamente no ridículo noticiar de um corte de abastecimento de água ou luz ou em insensatas discussões do ser a favor ou contra às respetivas vivências.

 

Das Roças atalhamos o leste e o Oeste como da Cancela descemos do Norte para o Sul. Do Espigão vemos de alto tudo um pouco como dos Rolos espreitamos ao de cima quase tudo.

 

Antes da despedida deixo-vos uma sugestão – um entretenimento- dos longínquos tempos em que à hora do jantar a eletricidade dava sinal de si e nos obrigava, à luz das velas, substituir tecnologia por memória e raciocínio.

O jogo consistia em adivinhar qual a casa da freguesia sendo que a ajuda para chegar ao resultado era dada pelo número de nomes da habitação. A título de exemplo dou-vos a moradia do meu padrinho José Augusto quando a sua irmã era ainda solteira. Todos os ´Josés´ e ´Marias´ deste jogo chamam-se dessa forma. Todos os outros têm nome ´Revesso´ (que significa torcido, basicamente diferente). Ora, no caso concreto a dica para o enigma seria uma casa com dois ´Josés´, uma ´Maria´ e uma mulher de nome ´Revesso´. Passo a passo e para adivinhar a charanga o jogador teria de referir a casa e indicar que lá vivia o José Augusto e o seu pai José Baldes (os dois `Josés´). A sua mãe, Maria de Jesus (a `Maria`), e a sua irmã de nome ´Revesso´, a Lúcia.

 

Claro que o sucesso de tais adivinhas implicava o conhecimento de quem por cá vive. Fosse para estimular o pensamento lógico ou para o estreitar do conceito de comunidade a verdade é que nos dias de hoje só seria mais difícil por morarem muitos ´Josés´ e muitas ´Marias´ sozinho(a)s, sinais do tempo e do envelhecimento da nossa população.

À data que vos escrevo, em todas as ruas vivemos poucos como antigamente se contavam muitos. 13 Josés, 13 Marias, mais 16 homens e 17 mulheres, estes últimos todos de nome ´Revesso´. Ah, pois, outra eventual diferença para o jogo: já dobramos a era em que as ´Marias´ e os ´Josés´ eram, sem dúvida, os mais evocados na Fajãzinha. Nomes diferentes, mas as mesmas gentes.

 

Contas feitas, mais 30 dias até abril.

 

Fajãzinha,

1 de março de 2021

Marco Henriques

 

*A toponímia apresentada em itálico ao longo da ´Crónica da Fajãzinha #3´ não inscreve todas as ruas e lugares da Fajãzinha. Trata-se de uma pequena amostra de um vasto e rico património linguístico deste lugar.

Perfil do Autor

Marco Henriques, natural da Fajãzinha, nasceu em 1988 e é licenciado em Comunicação Social e Cultura.

Trabalhou enquanto jornalista no Diário dos Açores entre 2009 e 2011 e é Oficial de Operações Aeroportuárias desde 2012 na empresa ANA - Grupo Vinci.

Colaborou com o jornal “O Monchique” entre 2006 até à sua extinção e é desde 2017, ano em que regressou à ilha das Flores, Presidente da Direção da Filarmónica União Operária e Cultural Nossa Senhora dos Remédios.

Marco Henriques

Marco Henriques, natural da Fajãzinha, nasceu em 1988 e é licenciado em Comunicação Social e Cultura. Trabalhou enquanto jornalista no Diário dos Açores entre 2009 e 2011 e é Oficial de Operações Aeroportuárias desde 2012 na empresa ANA - Grupo Vinci. Colaborou com o jornal “O Monchique” entre 2006 até à sua extinção e é desde 2017, ano em que regressou à ilha das Flores, Presidente da Direção da Filarmónica União Operária e Cultural Nossa Senhora dos Remédios.

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