
Isto é o título
No início de janeiro um excerto da crónica de um conterrâneo, vizinho e amigo, publicada neste espaço, transportou-me a um passado recente que no entanto já tem mais de duas décadas. Uma lágrima, sem querer, brotou-me no canto do olho e seguiram-se outras. Numa escrita elegante e com um toque muito personalizado, o jornalista Marco Henriques, que trocou os tabloides pelas pistas de aviação, deu asas à sua veia de futuro escritor e levou-nos a todos numa viagem de saudade até ao vale da Fajãzinha que ambos partilhamos.
Alguns dias depois ao cruzar-se comigo lançou-me o repto de também aqui escrever regularmente. Mais tarde o autor deste espaço, Fábio Alves, veio também confirmar o desafio. Aceitei sem compromissos de datas e fui amadurecendo a ideia. O que ia eu, volvidos mais de trinta décadas de colaboração regular com a imprensa escrita e radiofónica, trazer a este espaço, que se pretende ser para uma nova geração, habituada a outros sinais da escrita? E como a dúvida teimasse em fazer parte do meu quotidiano, durante semanas, fui amadurecendo a ideia e deixando passar os dias, com o tempo chuvoso e frio a marcar o calendário deste início de 2021, ainda a braços com a pandemia.
Há uma semana atrás, a partida repentina do corvino Manuel Pedras Rita, para a sua viagem eterna, levou-me a escrever uma crónica para o programa Céu Azul da Atena 1 Açores, que mantenho com alguma regularidade naquele espaço radiofónico regional. A partida deste amigo de longa data, deixou a sua família em primeiro lugar e a comunidade do Corvo em particular, em estado de choque, e foi o mote para esta primeira crónica, cujo texto da altura foi adaptado para este espaço. Dada a proximidade das duas ilhas, qualquer perda que por cá aconteça, deixa marcas, mais não seja porque nos conhecemos quase todos, neste caso em particular porque o amigo Manuel tinha um dom especial.
Com 73 anos feitos precisamente a 14 deste mês, o amigo Rita, ilustre Corvino, atrevo-me a dizer, era o Embaixador do Corvo , sem sair dela. Ao longo da sua vida, o tamanho da ilha não o coibiu de sonhar alto e de viajar pelo mundo. Primeiro servindo a pátria na guerra do ultramar, depois como emigrante nos Estados Unidos onde bebeu conhecimento que mais tarde viria a aplicar na sua ilha que tanto amava.
Foi precisamente nesse regresso à ilha que a política cruzou com ele, sendo eleito para três mandatos como presidente da autarquia do Corvo, precisamente em 1993, 1997 e posteriormente em 2009, desempenhando ainda entre 2013 e 2017 o cargo de presidente da Assembleia Municipal.
Nesta sua longa passagem pela política local, a sua visão do futuro, levou-o a realizar empreendimentos que mudaram a vila do Corvo e a própria ilha, podendo bem ser exemplo para muitos autarcas da região e do país. Exemplos disso, e as mais emblemáticas, são as obras referentes ao saneamento básico, a instalação dos painéis solares em todas as casas da vila e a construção das lagoas artificiais, resolvendo assim uma dor de cabeça dos Corvinos quanto ao abastecimento de água potável à Vila e que era uma preocupação sempre presente no dia a dia do amigo Rita.
Embora certamente fique muito por dizer sobre o seu lado político enquanto autarca, cujo voto de pesar aprovado na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores recentemente é exemplo disso, gostaria de partilhar convosco um pouco do Manuel Rita - empresário - que tive ocasião de presenciar nas minhas viagens regulares aquela ilha nos últimos anos. Proprietário do Comodoro, único hotel da ilha, fruto da persistência incansável do seu trabalho, apoiado pela esposa e família, aquele acolhedor espaço foi pouco a pouco ganhando notoriedade , face à simpatia com que recebia todos aqueles que por ali passavam de férias, em negócios ou por motivos de trabalho.
A receção começava logo no aeroporto ou porto, recebendo de braços abertos quem ali ficava. Seguia-se a instalação no seu espaço que marca por asseio, requinte e qualidade de construção, não tivesse sido ele carpinteiro quando andou emigrado durante décadas nos Estados Unidos.
Manuel Rita quebrava o gelo que pudesse ainda existir ou algum receio da viagem que tivesse marcado os seus clientes, com um sorriso franco e aberto, disponibilizando o seu espaço e os seus serviços para tornar o mais agradável possível a nossa estadia no Corvo. Pude viver essa experiência muitas vezes, nas viagens que ali fazia e onde ficava normalmente uma semana ou mais. Para além do pequeno almoço farto e variado que ele próprio preparava com carinho e bem cedo, começando com o ritual de comprar o pão na única padaria da ilha, ainda o sol não aparecera no horizonte, Manuel Rita disponibilizava ainda a cozinha de apoio ao hotel, para quem quisesse utilizar durante a sua permanência, num gesto pouco usual em espaços desta natureza.
Partilhei ainda com ele animadas conversas, trocando ideias sobre a política local, regional e até nacional, confortavelmente sentados na sala de convívio do seu hotel, saboreando um chá ou petiscando uma fatia de bolo feito pela esposa que embora de forma mais discreta é também a alma do empreendimento que Manuel Rita vivia intensamente das sete da manhã até noite dentro.
Quis a lei da vida que num dos passeios matinais que sempre fazia, à volta da pista, a sua permanência entre os seus mais queridos fosse interrompida drasticamente, terminando assim uma vida de trabalho incansável, porque o Comendador Manuel Rita, apesar das suas mais de sete décadas, tinha ainda muito para dar à família e à ilha, mais não fosse as suas memórias.
Tal como Raul Brandão afirmou nas Ilhas Desconhecidas “o Corvo é um mundo” atrevo-me a dizer também que a ilha que tanto amava, perdeu o seu Embaixador residente que nas últimas décadas, colocou-a no panorama turístico além fronteiras.
Aqui das Flores, a escassas quinze milhas, resta-me enviar um abraço à família e aos Corvinos, na certeza que continuará bem presente através da sua obra. Até um dia Amigo Rita.
José António Corvelo de Freitas é natural e residente na Fajãzinha onde nasceu em Maio de 1965. Foi sócio fundador e diretor d´ O Monchique, último jornal mensário publicado na ilha das Flores e que manteve nas bancas durante dezoito anos. Durante mais de três décadas colaborou com diversos órgãos de comunicação social da região. Bancário de profissão, dedica algum do seu tempo livre à agricultura, ao alojamento local e à restauração. Exerce ainda o cargo de deputado municipal na Assembleia Municipal das Lajes. É também o atual presidente do Conselho de Ilha das Flores.
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