O Vizinho

Isto é o título

Sempre que alguém morre surgem várias homenagens e elegias, escrevem-se textos ou simples parágrafos a destacar as qualidades e feitos do falecido, sejam lidos na TV no caso de pessoas famosas ou sejam um simples post numa rede social no caso de “pessoas comuns”. É normal, e o que é certo é que raramente paramos para apreciar, reconhecer e valorizar pessoas ainda em vida.

Tenho um vizinho que já não é nada novo, que começa a notar bem o desgaste de uma vida de trabalho, e como ao longo dos anos fui aprendendo a admirá-lo, não vou esperar que morra, longe venha o dia, para lhe prestar aqui uma pequena homenagem por o achar um grande Florentino.

Conheci-o há uma década, quando fui registar uma das minhas pequenas parcelas de terra como exploração agrícola e soube que estava no nome dele. Bati-lhe à porta e o senhor, que nunca me tinha visto em lado nenhum, recebeu-me com simpatia e prestou-se a ir imediatamente resolver o mal entendido. Tem uma relva mesmo em frente à minha casa, é a única pessoa que passa nessa canada e ao longo dos anos fomo-nos cruzando e falando.

Responde sempre com paciência às minhas perguntas,  nunca se ri das mais  estúpidas como “quanto tempo demora a erva a crescer outra vez?” e consegue facilmente recuar duas gerações para explicar de quem é certo terreno. Nunca se chateou comigo em todas as vezes que as minhas ovelhas fugiram e acabaram a comer a erva das vacas dele.

Aprendi muita coisa sobre a ilha  há 50 anos ou mais, sobre as escolhas que se punham aos Florentinos e sobre a coragem que era precisa tanto para partir como para ficar. Conta-me histórias do tempo em que “fumava grandeza mas corria atrás de um bezerro até o cansar”. Conta-me como com o passar dos anos lhe foi custando cada vez mais o sofrimento dos bichos, coisa que faz sempre parte da vida de quem os cria mas que pessoas com corações maiores podem diminuir e evitar. Contou-me um milagre que presenciou numa festa do Espírito Santo e, sendo pessoa crente, não fala comigo de cima para baixo só por saber que eu não sou.

- Estás a ver aquelas 3 terras ali em cima, onde estão aquelas vacas? – E apontava para uns dez  alqueires numa encosta de grande inclinação – este verão mondei-as 3 vezes.

E eu ficava a pensar na capacidade que é precisa para subir até lá acima e passar horas e horas de roçadora, acima e abaixo, para que a relva seja bem tratada. A paisagem que tanto encanta os visitantes dos Açores, composta principalmente pelas relvas e cerrados cercados por muros de pedra, não é natural, é o fruto do trabalho de gerações de homens e mulheres como o meu vizinho, que semana após semana, ano após ano, trabalham para a manter assim depois de os seus antepassados terem trabalhado para a criar.

Mas o que nunca me deixa esquecer o meu vizinho é que desde o meu primeiro dia na ilha que por volta das 7 da manhã, seja no verão já com dia claro e brisas amenas seja no fundo do Inverno, noite fechada e com os piores temporais a uivar e descarregar torrentes de água, ouço-o passar na sua moto de caixa, a caminho de ver os seus animais. Sempre, todos os dias, sob todos os tempos, nada o consegue parar. Já não é porque não pode parar porque tem que sobreviver, não pode parar porque é a sua essência, a Terra, o seu cultivo e os animais que nela cria.

Tenho a sorte de ter conhecido o senhor José Pacheco e de ser seu vizinho. Sei que ainda o vou ouvir a passar todas as manhãs bem cedo, quer chova quer faça sol, durante mais uns anos bons, e que vamos continuar a cruzar-nos  na Canada do Cascalho e parar para falar durante uns minutos. É uma das pessoas que fez esta Ilha, aqui fica a minha homenagem, enquanto é tempo.

Perfil do Autor

Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.

Jorge Ventura

Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.

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