Isto é o título
Este Verão passou cá um jornalista de S.Miguel que me contactou para falar sobre o Património Baleeiro. Disse-lhe que não sou o melhor para falar sobre a História e o passado da baleação nas Flores, não faltam aqui pessoas que sabem muitíssimo mais do que eu, mas sobre o presente e o futuro posso falar.
Falei e respondi a perguntas mais de meia hora, acabou por não caber no trabalho que foi transmitido pela RTPA mas vou continuar a falar do tema, não só por ter feito minha a causa de defesa do Património Baleeiro mas também por estar convencido de que é um activo de grande importância para a ilha, que apesar dos esforços e dedicação dos que trabalharam nele no passado, continua a não estar bem aproveitado e a não ver o seu potencial realizado.
Vamos por partes. Primeiro, a História e a Museologia. Com o Centro do Boqueirão e a Antiga Fábrica da Baleia das Lajes, temos bem preservada e exposta a parte da indústria; existe bibliografia e muitos estudos sobre a faina baleeira, registos abundantes de memórias e imagens e felizmente ainda vários protagonistas vivos e quem se assegure de que as suas memórias vão sendo preservadas.
Depois do património edificado (falta qualificar as vigias) e imaterial, temos o Património móvel, os Botes e Lanchas, que foram salvos do esquecimento e destruição que traria o fim da baleação em 1987. Num esforço feito com visão, o Governo Regional comprou os botes e lanchas às armações encerradas (há nesta altura 40 botes operacionais na Região), nomeou uma Comissão e reservou dinheiro não só para a recuperação deles mas para o seu regresso ao Mar, para que continuassem vivos.
Estes 40 botes e lanchas, que incluem os nossos Formosa e São Pedro, estão entregues a Clubes Navais, Juntas de Freguesia e outras entidades públicas e, até chegar a pandemia, navegavam em treinos, passeios e regatas.
Antes da pandemia os que, com a carolice necessária, se ocupavam disto já enfrentavam problemas, sendo o principal deles o declínio geral do associativismo. Um bote baleeiro consome alguma tinta, lixa, de vez em quando madeira, pano e sisal mas o que consome mais é pão de milho, quer dizer, precisa de muita gente e força de braços, e precisa dessa gente não só para arriar, navegar e varar (uma companha são sete) mas precisa para todo o trabalho que tem que ser feito em terra, a movimentação do bote que pesa 700kgs vazio e a sua manutenção, e por mais máquinas que haja são sempre precisas mãos e cabeças humanas.
Além disso precisa de regularidade. Os botes não navegam, ou não deviam navegar, aleatoriamente. Incluem-se num desporto, a vela ou o remo, e não existe nenhum desporto que se possa praticar decentemente sem programa, regularidade, método e competição, é isso que tem falhado nas Flores.
Posto isto, como vejo eu o futuro do Património Baleeiro na ilha? Não fora a pandemia e seus custos sociais e económicos, que ainda estão por conhecer na totalidade, e eu estaria muito optimista, mas sendo assim estou apenas moderadamente optimista.
Primeiro, porque o poder político continua consciente do valor do Património Baleeiro não só cultural e desportivo mas também económico, e interessado em apoiar e desbloquear o potencial que existe, nomeadamente no sector do turismo. Para um açoriano que sempre viveu com isto, um bote é uma coisa corriqueira, mas para um estrangeiro, sobretudo para os interessados na náutica, é uma coisa fascinante e única e isso tem que ser valorizado.
Depois, porque noto aqui um aumento do interesse e da vontade de participar e ajudar, e isto não é só uma impressão, é uma realidade. O Clube Naval tem um plano além do curto prazo, que passa não só pelos botes mas pelo recuperar da Escola de Vela e começamos a ver chegar as pessoas, sem as quais nada disto se faria, por mais dinheiro que houvesse. E são as pessoas o mais importante, há aqui quem tenha dado muito do seu tempo e esforço ao Património Baleeiro e ao fim dos anos acusado o desgaste e o cansaço e se tenha afastado. É natural, resta agradecer esse trabalho que permitiu termos o que hoje temos. Outras pessoas afastaram-se por divergências, e se hoje estão a regressar o que devemos aprender é a conseguir sanar as divergências antes que levem ao afastamento de pessoas, porque a causa é mais importante que egos ou agendas pessoais.
No Verão passado numa das poucas vezes que arriámos o S.Pedro aconteceu algo que nunca me tinha acontecido antes: nos 7 membros da companha não havia um Florentino de origem, eram todos continentais como eu ou estrangeiros. Ao mesmo tempo que noto um certo desinteresse nos locais noto um crescente entusiasmo entre os estrangeiros residentes na ilha. Houve um tempo em que isto me incomodava mas hoje até me deixa contente. O que me interessa é manter os botes em condições, a navegar, a embelezar e representar a ilha e preservar a tradição, a origem de quem lá vai dentro é-me indiferente, desde que participe e trabalhe e assim ganhe o seu lugar na companha.
O Clube Naval tem ao seu cargo dois botes, se navegarem os dois são 14 pessoas, para um programa em condições temos que ter 20, se conseguirmos criar equipas de remo pode passar dos 30 envolvidos. Há lugar para todos e precisamos de todos, as portas do Clube estão abertas e agora todos os Sábados à tarde trabalha-se na Antiga Fábrica da Baleia, nos botes e nas outras embarcações, em prol do Património Baleeiro e da Escola de Vela que a ilha merece voltar a ter.
Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.
- Jorge Venturahttps://florentinos.pt/author/jorgeventura/Novembro 2, 2021