Isto é o título
“É um português que anda para aí mas é bom rapaz”, foi das primeiras coisas que ouvi a meu respeito quando vim morar para as Flores, já lá vão quase dez anos. Achei graça e não levei a sério, sabia que não era o sentimento geral, que a grande maioria das pessoas cá não vê continentais como estrangeiros…mas há uma diferença real que não se pode apagar nem ignorar. E será essa diferença uma coisa boa, má ou indiferente? Estou convencido de que é boa, quem vem de fora traz outros olhares e experiências e olha para coisas que só agora está a ver de um modo necessariamente diferente do de quem viu essas coisas toda a vida.
Por outro lado, quem cá nasceu e cresceu tem a visão feita da experiência e conhecimento da realidade, um conhecimento mais profundo quer seja sobre coisas triviais e simples quer seja sobre as coisas mais complexas que fazem o nosso dia a dia e , mais importante, sobre a história da ilha, não necessariamente da História de séculos passados mas pelo menos da história da última geração, a memória viva, e a meu ver é impossível compreender onde estamos se não tivermos uma noção boa de como cá chegámos. Vários recém chegados equipam-se com informações da wikipédia, do seu imaginário romantizado e do seu círculo próximo de amigos e sobre isso assenta o seu entendimento e atitude. Não é suficiente.
Desde que cheguei que criei laços e fiz amizades com Florentinos e estrangeiros, sempre andei mais ou menos no meio das duas “comunidades “ e me apercebi de problemas e vantagens, e igualmente das desconfianças dos locais e das idiossincrasias muito particulares que fui encontrando nos recém chegados, vários que acabaram por abandonar a ilha ou trocaram um sonho de permanência por outro menos ambicioso, de visitas regulares. Há hábitos e ideais que entram em choque, nem sempre é fácil a convivência entre quem chega a sonhar com paraísos idealizados que quase sempre implicam retrocessos materiais e quem sempre cá esteve e aspira a mais desenvolvimento, conveniências e oportunidades económicas. Isto foi ilustrado claramente numa sessão pública a que assisti em que se discutiu um projecto da EDA para uma nova hidroeléctrica, a maior parte dos locais foi informar-se sobre as condições, vantagens e desvantagens do plano, todos os “não naturais” foram protestar e um jovem até declarou convictamente, em inglês, que o que devia ser feito era racionamento de energia, luzes apagadas depois das 22:00. O meu esforço e meu apelo é no sentido de tentar conciliar duas visões que à partida parecem opostas , acredito que é possível encontrar no meio-termo soluções boas para a Ilha, é um desafio enorme mas creio que pode estar ao nosso alcance, se soubermos ouvir o outro lado, colaborar, discutir com civilidade nos sítios certos e se nos focarmos naquilo que verdadeiramente todos queremos para a ilha, porque pode não ser evidente mas todos, sejamos ambientalistas empedernidos ou progressistas dedicados, quer tenhamos nascido cá ou do outro lado do mundo, temos um interesse comum que devemos defender em comum e temos que viver em vizinhança.
Quando aceitei o convite para colaborar neste projecto “Florentinos”, lembrei-me logo da minha condição de continental e de como isso ia quadrar com uma colaboração numa publicação que pretende dar voz às gentes das Flores. Bom, quando tenho dúvidas sobre uma palavra, recorro ao dicionário para as esclarecer.
flo·ren·ti·no
(latim florentinus, -a, -um) : adjectivo e nome masculino
. Relativo a ou natural ou habitante da ilha das Flores.
Sou Florentino, e com orgulho.
Jorge Ventura, Nascido em Leiria em 1973, quase se licenciou em Ciências Sociais mas abandonou no último ano para prosseguir uma carreira de skipper de iates, profissão que exerceu entre 1999 e 2018 tendo navegado o equivalente a 12 vezes a circunferência da Terra e passado por mais de 60 países. Aportou de emergência nas Lajes das Flores em 2005 e foi amor à primeira vista. Vive nas Lajes desde 2011 e é actualmente presidente do Clube Naval de Lajes das Flores.
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