Os paradoxos da ilha

Isto é o título

Há 20 anos atrás, os Açores eram S. Miguel. Se estivéssemos em Lisboa e disséssemos ser dos Açores, ouviríamos de certeza a mesma resposta de sempre:

- Não se nota nada. Não tem sotaque.

E lá vinha a explicação de que os Açores são nove ilhas e cada ilha tem também o seu sotaque.

O tempo mudou. Hoje, os Açores já são nove ilhas e nove histórias, nove culturas, nove realidades que todos querem conhecer.  Ou por sermos território raro, reservas da biosfera ou paraísos sem poluição, a verdade é que os Açores andam nas bocas do mundo pelas melhores razões. Mesmo este ano, com a pandemia e grandes restrições à movimentação e às viagens, os poucos turistas que se atrevem a sair do seu país, mostram apetência pelas nossas ilhas. E não vamos discutir agora, se isso é bom ou mau no momento que estamos a atravessar. 

A ilha das Flores é considerada uma pérola no meio do atlântico. Todos sabemos isso e temos orgulho no bem que se diz de nós. Em boa verdade, os nossos únicos inimigos vivem na ilha. Somos nós, os rabugentos e maldispostos. Somos nós que nos armamos em vítimas porque nos habituamos a ganhar causas com esse recurso.

Nenhum florentino é um “coitadinho” a não ser quando se mostra invejoso e mesquinho para com os outros florentinos. Felizmente que essa atitude menor não é a regra. A ilha tem muita gente linda, generosa, gentil e grata mas também tem alguns Velhos do Restelo, sentados nas esquinas de beleza que não veem à espera que os outros resolvam a vida que não têm.

Nós sabemos da instabilidade de alguns aspetos da nossa vida relacionada com o clima e com os transportes, mas, se quisermos ser sinceros e verdadeiros, o nosso clima é um dos melhores da Europa a muitos níveis, somos bafejados por temperaturas extraordinárias durante a maior parte dos dias de inverno e nunca falta nada para comer. Tenho amigos que muito prezo, na comunidade estrangeira da ilha, e nunca vi nenhum deles aflito pelo barco. A maioria tem sempre tudo o que precisa no seu quintal e usa métodos de conservação que permitem nunca ter falta de nada e servir verdadeiros banquetes com comida semeada e colhida aqui. A diferença entre esta comunidade e os florentinos referidos antes, é que estes escolheram viver aqui depois de terem conhecido cidades grandes e vidas carregadas de stress, enquanto que nós, fomos escolhidos pela ilha e nem sempre estamos aqui por amor ao que temos. Não se pode nem deve viver nas Flores com a alma noutro lado. Nunca dá certo.

A nossa ilha tem tudo. Nós, é que temos dificuldade em ver, porque estamos perto demais para termos saudades uns dos outros ou porque não vimos o suficiente para poder comparar. Uma ilha pequena é como uma grande família. Com os mesmos trunfos e as mesmas limitações. Mas podemos dar a volta se essa for a nossa vontade. Se sentirmos muita alegria com cada conquista da ilha, com cada novo restaurante, cada novo negócio, cada novo alojamento, cada nova empresa. Tudo o que se cria dentro da ilha, é da ilha, é lucro para todos. Temos mais para comprar, ganhamos mais para dar ou comprar de outros, temos mais escolha, mais qualidade, mais incentivo a melhorar.

Temos estado a viver um momento difícil para todos, mesmo com a infinita sorte de ainda não termos tido problemas de grande complexidade. Temos tido um serviço de saúde atento, que tem feito tudo o que deve ser feito, com o esforço de muitos. Temos um centro de saúde em obras com todos os inconvenientes que isso possa gerar, mas os nossos profissionais de saúde nunca baixaram a guarda e isso tem permitido que vivamos com o mínimo de sobressalto.

Este é um tempo de gratidão por tudo isto. Por tudo. Temos tanto a agradecer que nos esquecemos que somos donos de uma liberdade e de uma paz que milhões de pessoas no mundo dariam tudo para ter. E só a gratidão transforma a nossa vida.

Tolentino Mendonça, num artigo intitulado “Agradecer o que não nos dão”, escreve assim:

“Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso, a própria existência, e do mesmo modo gratuito fizemos e fazemos a experiência de que somos protegidos, cuidados, acolhidos e amados. Se tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros (e é pena que esse exercício não nos seja mais habitual), perceberíamos o que a poetisa Adília Lopes repete como sendo a sua verdade: «sou uma obra dos outros». Todos somos.”

Somos o resultado do lugar onde estamos e daquilo que fazemos com o tempo que a vida nos dá sem exigir nada em troca. Somos a soma dos nossos gestos, da nossa atitude com os outros, da nossa interação com aqueles que nos rodeiam, das coisas que damos e das que recebemos, dos laços que criamos e daqueles que desfazemos, dos afetos que aceitamos e daqueles que recusamos.

A minha mensagem de hoje não é um trecho do evangelho do dia nem uma nota do jornal do maldizer. É tão somente a minha forma de atirar para a mesa uma reflexão sobre as Flores e as várias formas como cada um sente e vive as coisas magnificas e únicas que nos rodeiam.

Perfil do Autor

Eu não gosto de biografias porque eu sempre achei que por detrás de um herói de guerra pode estar apenas alguém que não tinha nada a perder.

Eu nasci em 1953 numa pequena ilha que ninguém conhecia. Era uma menina muito magra e nada bonita, mas era muito sonhadora e um pouco louca. Fazia perguntas embaraçosas, gostava de coisas diferentes, queria ser muitas coisas, gostava de escrever textos grandes, muitas vezes sem pés nem cabeça. Era inteligente, mas preguiçosa. Nunca fui aluna de quadro de honra nem me distingui senão em português e francês que eram, e ainda são, as minhas paixões. Mas tinha sonhos e queria sempre saber mais coisas, muitas coisas, não necessariamente para ir muito fundo nas questões, mas para saber muitas coisas. Sempre à procura do infinito que nunca encontrei.

Acabei por ter a profissão mais comum da época: professora primária num tempo em que precisei de um atestado de bom comportamento moral e civil do Presidente da junta de Freguesia da Fazenda e fiz a minha jura anti-comunista na direção escolar da Horta, com a mão direita em cima de uma velha Bíblia farta de ouvir mentiras. Sempre trabalhei nas Flores, em pequenas freguesias rurais com crianças simples de vidas humildes, com poucas referências que fossem para além da rocha alta cujas cascatas fazem hoje as delícias dos turistas. E foi numa dessas localidades, que no dia 25 de abril de 1974, trabalhei todo o dia sem saber que em Lisboa a aurora da liberdade tinha mudado Portugal com cravos vermelhos e a Grândola Vila Morena, canção que até então desconhecia.

E de muitas voltas e revoluções se fez a minha vida. Dirigente sindical, deputada pelo partido social democrata, aprendiz de mil coisas, reikiana, aprendi tudo o que pude nas áreas mais estranhas: desenvolvimento pessoal com os maiores gurus do país, coaching, numerologia, astrologia, meditação vipassana, etc etc. Sempre à procura da mulher que gostava de ter sido com uma autenticidade dolorosa que me valeu infindáveis desgostos, com as emoções sempre na garganta até ficar sem pio, horas a fio no divã do psicanalista e noutros estranhos mundos de leitura da aura ou da hipnoterapia.

Resolvidos os conflitos com a família que é a base de todas as nossas desavenças interiores e depois de escrever algumas coisinhas que não lograram lugar de destaque em nenhuma livraria, pacifiquei-me com tudo. Bendita idade que tudo trazes, até esta sensação de alegria apenas por acordar, esta gratidão infinita por cada hora, por cada copo com amigos, por cada momento na companhia de pessoas interessantes e intelectualmente honestas.

Quase no fim desta reta, decidi fazer mestrado em Filosofia para Crianças. Terminei no dia 27 de julho deste ano da graça de 2020, através do zoom, num ano de acontecimentos extraordinários como esta coisa de querer ser mestre numa área tão interessante, mas desafiadora. Quando terminei, estava vazia, decapitada emocionalmente. Fiquei muito tempo sentada no mesmo lugar, olhando o écran de onde tinham saído, professores e colegas e disse para mim mesma:

- E agora Gabriela?

Ainda não sei. Talvez não faça mais nada. Talvez fique aqui, a inspirar o ar puro desta ilha magnifica a tentar passar uma mensagem que só se entende na altura em que já não se precisa.

Depois do teu desafio, pensei que iria colaborar com o teu espaço de florentinos. Um contributo que espero faça sentido para ti e ajude â reflexão conjunta que todos devemos tomar em mãos porque é realmente um assunto nosso. E quando digo “nosso” é porque é dos florentinos.

Gabriela Silva

Eu não gosto de biografias porque eu sempre achei que por detrás de um herói de guerra pode estar apenas alguém que não tinha nada a perder. Eu nasci em 1953 numa pequena ilha que ninguém conhecia. Era uma menina muito magra e nada bonita, mas era muito sonhadora e um pouco louca. Fazia perguntas embaraçosas, gostava de coisas diferentes, queria ser muitas coisas, gostava de escrever textos grandes, muitas vezes sem pés nem cabeça. Era inteligente, mas preguiçosa. Nunca fui aluna de quadro de honra nem me distingui senão em português e francês que eram, e ainda são, as minhas paixões. Mas tinha sonhos e queria sempre saber mais coisas, muitas coisas, não necessariamente para ir muito fundo nas questões, mas para saber muitas coisas. Sempre à procura do infinito que nunca encontrei. Acabei por ter a profissão mais comum da época: professora primária num tempo em que precisei de um atestado de bom comportamento moral e civil do Presidente da junta de Freguesia da Fazenda e fiz a minha jura anti-comunista na direção escolar da Horta, com a mão direita em cima de uma velha Bíblia farta de ouvir mentiras. Sempre trabalhei nas Flores, em pequenas freguesias rurais com crianças simples de vidas humildes, com poucas referências que fossem para além da rocha alta cujas cascatas fazem hoje as delícias dos turistas. E foi numa dessas localidades, que no dia 25 de abril de 1974, trabalhei todo o dia sem saber que em Lisboa a aurora da liberdade tinha mudado Portugal com cravos vermelhos e a Grândola Vila Morena, canção que até então desconhecia. E de muitas voltas e revoluções se fez a minha vida. Dirigente sindical, deputada pelo partido social democrata, aprendiz de mil coisas, reikiana, aprendi tudo o que pude nas áreas mais estranhas: desenvolvimento pessoal com os maiores gurus do país, coaching, numerologia, astrologia, meditação vipassana, etc etc. Sempre à procura da mulher que gostava de ter sido com uma autenticidade dolorosa que me valeu infindáveis desgostos, com as emoções sempre na garganta até ficar sem pio, horas a fio no divã do psicanalista e noutros estranhos mundos de leitura da aura ou da hipnoterapia. Resolvidos os conflitos com a família que é a base de todas as nossas desavenças interiores e depois de escrever algumas coisinhas que não lograram lugar de destaque em nenhuma livraria, pacifiquei-me com tudo. Bendita idade que tudo trazes, até esta sensação de alegria apenas por acordar, esta gratidão infinita por cada hora, por cada copo com amigos, por cada momento na companhia de pessoas interessantes e intelectualmente honestas. Quase no fim desta reta, decidi fazer mestrado em Filosofia para Crianças. Terminei no dia 27 de julho deste ano da graça de 2020, através do zoom, num ano de acontecimentos extraordinários como esta coisa de querer ser mestre numa área tão interessante, mas desafiadora. Quando terminei, estava vazia, decapitada emocionalmente. Fiquei muito tempo sentada no mesmo lugar, olhando o écran de onde tinham saído, professores e colegas e disse para mim mesma: - E agora Gabriela? Ainda não sei. Talvez não faça mais nada. Talvez fique aqui, a inspirar o ar puro desta ilha magnifica a tentar passar uma mensagem que só se entende na altura em que já não se precisa. Depois do teu desafio, pensei que iria colaborar com o teu espaço de florentinos. Um contributo que espero faça sentido para ti e ajude â reflexão conjunta que todos devemos tomar em mãos porque é realmente um assunto nosso. E quando digo “nosso” é porque é dos florentinos.

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