Na Ilha

Isto é o título

Amanheceu de chuva. Através da janela fechada percebo a insularidade no nevoeiro que me tapa a imagem do mar. Ainda assim, sinto que a chuva é a mais abençoada prova de amor que o céu nos envia. O verde agradece e as cascatas celebram em dança a bênção da sua grandeza.

É um bom dia para escrever para Os Florentinos. Ninguém conhece como nós aquilo que nos faz diferentes. Tenho tido muitas vezes essa perceção quando falo com açorianos da cidade ou das ilhas com mais de cinco mil habitantes. O açoriano é sempre inteligente, mas o florentino teve que atravessar muito mais mar para chegar a todo o lado.

Há várias ilhas das Flores. Há a de Roberto Mesquita e Pedro da Silveira, há a de José Arlindo Trigueiro e Pierluigi Bragaglia, há a de António Maria Gonçalves e a de Carlos Fagundes. E há a ilha de agora, a ilha onde vivemos. É nesta que temos que realizar alguns milagres. Com algumas das pessoas que viveram nas outras todas, mas já esqueceram esse tempo de resiliência e trabalho empenhado.

Não gosto de continuarmos tão dependentes do exterior. Compramos courgettes e alfaces, batatas e repolhos de Lisboa e de S. Miguel. Tudo o que cai nas prateleiras de frescos do supermercado vem de longe. São verduras enjoadas, metidas em frio para suportar a viagem. A qualidade desse produto não é fiável. Mas nós, que duvidamos das vacinas e dos juízes, compramos legumes que podíamos cultivar, como se isso fosse imperioso. Porque decidimos que o nosso inverno não deixa crescer nada. Esquecendo que nos anos 60 também comíamos e não havia Malenas de 15 em 15 dias. E também não havia o stress que há hoje. Nem subsídios nem programas, nem dinheiro público para satisfazer as respostas sociais. Cada um tinha que lutar pelo sustento e como as dificuldades aguçam o engenho, todos tinham o suficiente. E havia solidariedade que era uma coisa bonita de se ver.

Esta ilha das Flores, que hoje vejo tão marcada pela modernidade nem sempre auspiciosa, tem aos comandos, muita gente de bem. Sou daquelas que acredita que podíamos ser ilhas modelo a mostrar ao mundo a nossa independência enquanto comunidades. Sou das que gosta de ver brilhar a ilha e de ver toda a gente feliz e a ganhar dinheiro. Nada me faz mais feliz que mostrar ao mundo as coisas boas, e são muitas, que aqui fazemos. Nem todos aproveitamos o que é nosso como devíamos. Não precisamos de importar congelados, a descongelar na hora de consumir. O produto local é bom e tem todo o espaço que necessita para melhorar. Não precisamos de consumir compotas que vêm de fora quando temos fruta biológica que podemos usar para a sua confeção.

Há muita terra na ilha e verifico que a maioria dos estrangeiros que escolheram viver aqui, têm de tudo, mesmo no inverno. Isso parece provar que as coisas dão. As técnicas de cultivo é que podem ser diferentes. Há também quem use métodos de conservação dos alimentos que utilizam práticas sustentáveis e saudáveis tais como a desidratação ou a fermentação biológica.

Já se faz muita coisa por aí, algumas delas pouco conhecidas mesmo pelos locais. Mas há muito para fazer. Há muito caminho para andar. Vamos ter eleições autárquicas em outubro. Gostaria de ver incluído nos programas eleitorais um interesse crescente por práticas sustentáveis, aproveitamento dos nossos recursos naturais, diminuição drástica da burocracia municipal, maior intervenção do poder local na vida da comunidade, maior participação de todos, mais ação, mais trabalho, mais entusiasmo, mais alegria, mais camaradagem, menos má língua e menos invejas ridículas. São tudo coisas que não custam dinheiro e não é preciso apresentação de orçamento para as concretizar. Dependem do entusiasmo de cada um e da ajuda de todos.

Ninguém se interessa pelas coisas que não fez, mas toda a gente gosta de escrever o seu nome em coisas de interesse. Quando fazemos das pessoas, participantes e autores dos nossos sonhos, estamos a levá-los pelo mesmo caminho que trilhamos. Isso faz toda a diferença.

Lembro-me de uma formação que fiz há muitos anos com um homem que mudou vida de muita gente. E nunca me esqueço de uma regra de ouro que ele repetia em quase todos os seus discursos: antes de fazer coisas, é fundamental fazer um levantamento de necessidades. Saber o que faz falta numa comunidade, o que é que as pessoas gostariam de ver feito no lugar onde vivem. Os programas eleitorais elencam demasiadas coisas que acabam por ter o efeito do fogo de artificio.

A ilha das Flores vai ser procurada por gente de todo o mundo, mais uma vez, este ano. E, felizmente, temos muito alojamento local e começamos também a ter mais e melhor oferta em termos de comércio alimentar e restaurantes. Temos muito pela frente. Façamos mais futuro, inovando e recriando o que temos com a participação de todos.

Perfil do Autor

Eu não gosto de biografias porque eu sempre achei que por detrás de um herói de guerra pode estar apenas alguém que não tinha nada a perder.

Eu nasci em 1953 numa pequena ilha que ninguém conhecia. Era uma menina muito magra e nada bonita, mas era muito sonhadora e um pouco louca. Fazia perguntas embaraçosas, gostava de coisas diferentes, queria ser muitas coisas, gostava de escrever textos grandes, muitas vezes sem pés nem cabeça. Era inteligente, mas preguiçosa. Nunca fui aluna de quadro de honra nem me distingui senão em português e francês que eram, e ainda são, as minhas paixões. Mas tinha sonhos e queria sempre saber mais coisas, muitas coisas, não necessariamente para ir muito fundo nas questões, mas para saber muitas coisas. Sempre à procura do infinito que nunca encontrei.

Acabei por ter a profissão mais comum da época: professora primária num tempo em que precisei de um atestado de bom comportamento moral e civil do Presidente da junta de Freguesia da Fazenda e fiz a minha jura anti-comunista na direção escolar da Horta, com a mão direita em cima de uma velha Bíblia farta de ouvir mentiras. Sempre trabalhei nas Flores, em pequenas freguesias rurais com crianças simples de vidas humildes, com poucas referências que fossem para além da rocha alta cujas cascatas fazem hoje as delícias dos turistas. E foi numa dessas localidades, que no dia 25 de abril de 1974, trabalhei todo o dia sem saber que em Lisboa a aurora da liberdade tinha mudado Portugal com cravos vermelhos e a Grândola Vila Morena, canção que até então desconhecia.

E de muitas voltas e revoluções se fez a minha vida. Dirigente sindical, deputada pelo partido social democrata, aprendiz de mil coisas, reikiana, aprendi tudo o que pude nas áreas mais estranhas: desenvolvimento pessoal com os maiores gurus do país, coaching, numerologia, astrologia, meditação vipassana, etc etc. Sempre à procura da mulher que gostava de ter sido com uma autenticidade dolorosa que me valeu infindáveis desgostos, com as emoções sempre na garganta até ficar sem pio, horas a fio no divã do psicanalista e noutros estranhos mundos de leitura da aura ou da hipnoterapia.

Resolvidos os conflitos com a família que é a base de todas as nossas desavenças interiores e depois de escrever algumas coisinhas que não lograram lugar de destaque em nenhuma livraria, pacifiquei-me com tudo. Bendita idade que tudo trazes, até esta sensação de alegria apenas por acordar, esta gratidão infinita por cada hora, por cada copo com amigos, por cada momento na companhia de pessoas interessantes e intelectualmente honestas.

Quase no fim desta reta, decidi fazer mestrado em Filosofia para Crianças. Terminei no dia 27 de julho deste ano da graça de 2020, através do zoom, num ano de acontecimentos extraordinários como esta coisa de querer ser mestre numa área tão interessante, mas desafiadora. Quando terminei, estava vazia, decapitada emocionalmente. Fiquei muito tempo sentada no mesmo lugar, olhando o écran de onde tinham saído, professores e colegas e disse para mim mesma:

- E agora Gabriela?

Ainda não sei. Talvez não faça mais nada. Talvez fique aqui, a inspirar o ar puro desta ilha magnifica a tentar passar uma mensagem que só se entende na altura em que já não se precisa.

Depois do teu desafio, pensei que iria colaborar com o teu espaço de florentinos. Um contributo que espero faça sentido para ti e ajude â reflexão conjunta que todos devemos tomar em mãos porque é realmente um assunto nosso. E quando digo “nosso” é porque é dos florentinos.

Gabriela Silva

Eu não gosto de biografias porque eu sempre achei que por detrás de um herói de guerra pode estar apenas alguém que não tinha nada a perder. Eu nasci em 1953 numa pequena ilha que ninguém conhecia. Era uma menina muito magra e nada bonita, mas era muito sonhadora e um pouco louca. Fazia perguntas embaraçosas, gostava de coisas diferentes, queria ser muitas coisas, gostava de escrever textos grandes, muitas vezes sem pés nem cabeça. Era inteligente, mas preguiçosa. Nunca fui aluna de quadro de honra nem me distingui senão em português e francês que eram, e ainda são, as minhas paixões. Mas tinha sonhos e queria sempre saber mais coisas, muitas coisas, não necessariamente para ir muito fundo nas questões, mas para saber muitas coisas. Sempre à procura do infinito que nunca encontrei. Acabei por ter a profissão mais comum da época: professora primária num tempo em que precisei de um atestado de bom comportamento moral e civil do Presidente da junta de Freguesia da Fazenda e fiz a minha jura anti-comunista na direção escolar da Horta, com a mão direita em cima de uma velha Bíblia farta de ouvir mentiras. Sempre trabalhei nas Flores, em pequenas freguesias rurais com crianças simples de vidas humildes, com poucas referências que fossem para além da rocha alta cujas cascatas fazem hoje as delícias dos turistas. E foi numa dessas localidades, que no dia 25 de abril de 1974, trabalhei todo o dia sem saber que em Lisboa a aurora da liberdade tinha mudado Portugal com cravos vermelhos e a Grândola Vila Morena, canção que até então desconhecia. E de muitas voltas e revoluções se fez a minha vida. Dirigente sindical, deputada pelo partido social democrata, aprendiz de mil coisas, reikiana, aprendi tudo o que pude nas áreas mais estranhas: desenvolvimento pessoal com os maiores gurus do país, coaching, numerologia, astrologia, meditação vipassana, etc etc. Sempre à procura da mulher que gostava de ter sido com uma autenticidade dolorosa que me valeu infindáveis desgostos, com as emoções sempre na garganta até ficar sem pio, horas a fio no divã do psicanalista e noutros estranhos mundos de leitura da aura ou da hipnoterapia. Resolvidos os conflitos com a família que é a base de todas as nossas desavenças interiores e depois de escrever algumas coisinhas que não lograram lugar de destaque em nenhuma livraria, pacifiquei-me com tudo. Bendita idade que tudo trazes, até esta sensação de alegria apenas por acordar, esta gratidão infinita por cada hora, por cada copo com amigos, por cada momento na companhia de pessoas interessantes e intelectualmente honestas. Quase no fim desta reta, decidi fazer mestrado em Filosofia para Crianças. Terminei no dia 27 de julho deste ano da graça de 2020, através do zoom, num ano de acontecimentos extraordinários como esta coisa de querer ser mestre numa área tão interessante, mas desafiadora. Quando terminei, estava vazia, decapitada emocionalmente. Fiquei muito tempo sentada no mesmo lugar, olhando o écran de onde tinham saído, professores e colegas e disse para mim mesma: - E agora Gabriela? Ainda não sei. Talvez não faça mais nada. Talvez fique aqui, a inspirar o ar puro desta ilha magnifica a tentar passar uma mensagem que só se entende na altura em que já não se precisa. Depois do teu desafio, pensei que iria colaborar com o teu espaço de florentinos. Um contributo que espero faça sentido para ti e ajude â reflexão conjunta que todos devemos tomar em mãos porque é realmente um assunto nosso. E quando digo “nosso” é porque é dos florentinos.

Crónicas Geral Sociedade

Flores, 20 anos depois

Flores, 20 anos depois No dia em que escrevo, completam-se vinte anos desde que cheguei às Flores. Vinte e cinco horas de viagem no Golfinho Azul, partindo da Praia da Vitória, passando por Graciosa, São Jorge, Pico e Faial. No porão ia o meu Suzuki Samurai, carregado até mais não com coisas que achei essenciais. […]

LER MAIS
Distintos Florentinos Geral

PADRE INÁCIO COELHO

(1575-1643) Fundador do Convento de S. Boaventura   Nasceu em Santa Cruz das Flores por volta de 1575, filho de Mateus Coelho da Costa, Capitão-mor das Flores e do Corvo, e de sua primeira mulher, Catarina Fraga (por sua morte, ocorrida a  13 de Agosto de 1594, Mateus Coelho da Costa voltaria a casar, desta […]

LER MAIS
Cultura Geral Sociedade

Um acto simbólico

Centenário de Pedro da Silveira (1922-2022) A Eng. Manuela Meneses, da direcção da Casa dos Açores em Lisboa, inaugura a placa no prédio em que viveu Pedro da Silveira. A placa no prédio 14 da Rua Freitas Gazul, em Campo de Ourique, Lisboa. Presentes conversam sobre o homenageado. Manuela Meneses lê mensagem enviada por Luís […]

LER MAIS